Outro dia eu tive que refazer o percurso que eu costumava fazer diariamente para ir ao trabalho e um muro me chamou minha atenção porque ele não estava lá há um ano atrás e ele cercava justamente a casa de uma das pessoas com a qual mais fiz amizade ao longo dos 5 anos que passei trabalhando na creche. Uma senhora idosa que costumava sentar na frente de sua casa na mesma hora todos os dias para aproveitar o vento, ver a paisagem e quem passava.
Com o passar do tempo nós duas percebemos que uma sempre passava e a outra sempre estava ali sentada... Então passamos nos reconhecer com um sorriso que passou a um cumprimento dando lugar com o dias, semanas, meses, anos, ao habito de papear. Nas minhas férias da faculdade nós chegamos a ver o sol se por em meio a nossa conversa e isso era muito bom.
Amor, crianças, saúde, vontade de viver eram temas recorrentes em nossas conversas. Aos poucos nós fomos contando uma a outra a nossa vida, nossos dilemas, problemas, buscas por soluções, sonhos, doenças e curas, amores bem sucedidos e mal sucedidos também.
Eu confesso que nunca conheci ninguém com mais amor a vida que essa minha amiga cujo nome eu não conto porque nunca perguntei! Cinco anos de papo e nós nunca nos preocupamos de perguntar coisas uma a outra, a conversa fluía tão naturalmente que nem ela jamais perguntou meu nome nem eu o nome dela.
Minha amiga está além dos 70 e convive com todos os males da idade, tomando medicação diariamente, seguindo uma dieta rígida sem açúcar, sem sal, sem gordura, sem nada, e ainda assim com animo, gostando de viver, achando que vale a pena o estrago. Sem se lamentar pelas dores que se foram ou pelas as que vieram, sendo ainda capaz de sentar na frente de casa para ver o tempo passar em um fim de tarde.
Sei lá, aquele muro alto cercando a casa de minha amiga me causou um certo mal estar. Me fez pensar nos muitos muros que existem em nossa volta aos quais esse se soma pesadamente, ao menos para mim.
Acabei lembrando dos versos de
Robert Frost que aprendi com um dos meus companheiros de virtualidade, o Rafael, "Alguma coisa existe que não aprecia o muro" e nessa lembrança acabo pensando que, talvez,
boas cercas não façam bons vizinhos. Acho que
boas cercas fazem apenas bons estranhos.
Digam o que disserem sobre segurança ou insegurança, privacidade, cães selvagens, terrores noturnos ou o inferno e suas legiões, talvez se aquele muro estivesse ali há seis anos atrás eu não tivesse conhecido uma das personagens que mais marcaram a história dos meus 20 poucos anos e seria um ser humano muito mais pobre.
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P.S.: A proposito de muros, acabei de lembrar de um texto de Neil Gaiman e Dave Mckean que li em Sinal e Ruido, para quem gosta eu deixo aqui...
Vier Mauer
Neil Gaiman e Dave Mckean
ABERTURA
"Alguma coisa existe que não aprecia muro."
Robert Frost escreveu isso, mas também
sugeriu no mesmo poema, "Muro Remendado",
que "Boas cercas fazem bons vizinhos",
então o que podemos dizer?
A PRIMEIRA PAREDE
Tento imaginar quem construiu a primeira
parede. O que ele tinha em mente. Ou ela.
Proteção? Privacidade? Ou outra coisa.
Construímos nossas civilizações com
paredes, que nos dão abrigo e fortaleza.
Mantêm distantes "os outros": as
intempéries, os animais selvagens,
as pessoas que são diferentes. Ao nos dividirem, as paredes nos definem.
As paredes separam as pessoas;
e não só as paredes que construímos.
Talvez as mais assustadoras sejam aquelas
que somos capazes de ver, mas
em cuja existência acreditamos.
A SEGUNDA PAREDE
Eu tive um sonho a respeito disso quando
era pequeno.
No meu sonho havia uma nota, uma nota
musical, um som; e quando ela era tocada todas
as paredes começavam a ruir. E todas as pessoas
de todos os lugares podiam ver...
Podiam ver umas as outras, fazendo as coisas
que as pessoas fazem entre quatro paredes,
Ninguém tinha mais onde se esconder.
Então acordei, e nunca soube se não ter nenhuma
parede era uma coisa boa ou ruim. Não ter onde
se esconder, poder ir a qualquer lugar; sem
fingimento, sem proteção, sem segredos.
A TERCEIRA PAREDE
Disseram-me que a Grande Muralha da China é a única construção
humana na superfície da Terra que pode ser vista do espaço.
Eu nunca vi a Terra do espaço. Não conheço ninguém que tenha
feito isso.
Só vi as fotografias.
Disseram-me que, daquela distância, é muito difícil diferenciar um
país do outro. Era de esperar que eles fossem coloridos, como nos
velhos mapas da escola.
Assim todos diferenciariam.
A QUARTA PAREDE
Quando ouvir dizer que o Muro de Berlim caíra, minha primeira reação foi de
alívio; mas então eu pensei: e se existisse uma jovem que passou anos - metade de
sua vida - pintando naquele muro?
Pintando uma mensagem, ou uma imagem.
Se todas as manhãs ela se levantasse bem cedo, fosse até lá e pintasse um ou
dois traços no muro. Todos os dias, na chuva, no frio, as vezes até no escuro.
Era o seu grito contra a opressão. Seu protesto contra o muro.
Ela estava quase terminando quando o muro foi demolido.
As pessoas poderiam ir e vir livremente. O muro contra o qual ela protestava
não existia mais, assim como sua criação, desfeita em pedaços, vendida a um
colecionador particular.
Tento imaginar como ela se sentiu. Espero que não tenha ficado desapontada.
Eu teria ficado.
ENCERRAMENTO
Talvez devêssemos olhar além das paredes.
Escutem: pintores, escritores, músicos, cineastas e grafiteiros que pintam
frases que brotam como flores luminosas nas laterais de construções
abandonadas - todos vocês.
Existe uma quarta parede a ser demolida.
Governos e autoridades vivem afirmando que boas cercas fazem bons
vizinhos, e aumentam a vigilancia nas fronteiras em um esforço para nos
deixar felizes da maneira como estamos.
Mas alguma coisa existe que não aprecia o muro, e seu nome é
humanidade.