Minha religião ensina que devemos ter cuidado com o que vemos e ouvimos, pois muitas vezes acontece daquilo que foi visto e ouvido encontrar lugar na cabeça, descer ao coração e nos envolver em um estado de urgência de ação. Ontem a noite eu vi e ouvi em um vídeo coisas que desceram ao coração... e putz ou eu falo sobre isso ou surto!
O vídeo, postado no facebook, documenta uma intervenção feita por estudantes em uma aula na USP feita por alunos e alunas para falar sobre as questões raciais na universidade. A intervenção virou uma calorosa discussão sobre direitos e privilégios... Nossa, tanto o rapaz que gravou quando o seu companheiro deram um doloroso espetáculo de incompreensão.
Agora vem meu desabafo. Ele foi escrito no calor do momento ao som de Nação Zumbi, esse post pode ter ficado longo!
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Tem gente que não quer saber mesmo dos problemas enfrentados por quem é pobre... Eles não entram na favela, quando passam pela esquina dela e nem olham para o lado, estão pouco se importando com o que acontece além da curva da avenida que leva a periferia mais próximas, a menos, claro, que haja diversão ou disponibilidade para um trabalhinho muito mal pago.
Uma considerável parte das pessoas além dos muros invisíveis da favela, não entra na curva que leva a ela e não quer ver a periferia passar pela curva que leva a vida delas com qualquer intuito além do de servir e obedecer. Estão do lado de lá e nós do lado de cá e querem que fique assim.
Nossas dores não importam, nossas dificuldades diárias não importam, nossas lutas não tem relevância.
Ulisses Tavares escreveu:
"Tem gente passando fome.
E não é a fome que você imagina entre uma refeição e outra.
Tem gente sentindo frio.
E não é o frio que você imagina entre o chuveiro e a toalha.
Tem gente muito doente.
E não é a doença que você imagina entre a receita e a aspirina.
Tem gente sem esperança.
Mas não é o desalento que você imagina entre o pesadelo e o despertar.
Tem gente pelos cantos.
E não são os cantos que você imagina entre o passeio e a casa.
Tem gente sem dinheiro.
E não é a falta que você imagina entre o presente e a mesada.
Tem gente pedindo ajuda.
E não é aquela que você imagina entre a escola e a novela.
Tem gente que existe e parece imaginação.”
Ulisses, tem tanta gente que não sabe, não quer saber, e tem RAIVA, NOJO e MEDO de quem sabe! E essa gente raivosa, enojada e medrosa quando vai a rua estragar panelas produz cenas que recebem a legenda de "Protesto Pacifico" ou "Simbolo de Maturidade Democrática". Quando quem sabe e não aguenta mais ficar calado vai a legenda é "Atrapalhando o Transito" ou "Vandalismo". Ulisses, tem gente que existe e parece pesadelo.
Paulo Freire escreveu:
"A FOME diante da FARTURA é uma IMORALIDADE."
Paulo, nosso mundo é imoral! Nós estamos ficando fartos disso! Todos os dias mais e mais fartos! Temos direitos e queremos vê-los deixarem de ser papeis pintados com tinta.
E eu, fico PUTA PUTA PUTA PUTA PUTA PUTA PUTA PUTA PUTAAAAAAAAAA... MIL VEZES ENSANDECIDA quando pessoas acusam negros, mulheres, crianças abusadas, homossexuais, trans (especialmente as mulheres trans), favelados de estarem se vitimizando.
Tenho vontade de gritar:
"Parceiro, nós não nos vitimizamos, nós somos vitimas! Existe diferença!
Parceiro, nós somos roubados desde o dia que nascemos em maternidades lotadas com nossas mães passando por violência obstétrica!
Quando alguém abre sua carteira e percebe a falta de algo, aquilo que lhe falta grita Parça!"
Contemplo absurdada como parece haver uma infinidade de pessoas incapazes de perceber a diferente entre o vulgar "coitadismo" e esse sentimento de ter sido vitima de situação desleal como o roubo da dignidade intrínseca a todo ser humano.
Como a Katherine Boo percebeu quando entrou em Annawadi, uma favela próxima do moderno "Aeroporto Internacional de Mumbai", na Índia, nós estamos
"Em busca de um final feliz".
Porém, para aquelas pessoas com dificuldade de compreensão em relação a essa obviedade, sempre se pode repetir o poema
"Anti-evasão" do cabo-verdiano Ovídio Martins:
"Pedirei
Suplicarei
Chorarei
Não vou para Pasárgada
Atirar-me-ei ao chão
E prenderei nas mãos convulsas
Ervas e pedras de sangue
Não vou para Pasárgada
Gritarei
Berrarei
Matarei
Não vou para Pasárgada"
Nós as convidamos pra ouvir "O canto da Liberdade" ouvido por Solano Trindade há uma centena de anos atrás:
"Ouço um novo canto,
Que sai da boca,
de todas as raças,
Com infinidade de ritmos...
Canto que faz dançar,
Todos os corpos,
De formas,
E coloridos diferentes...
Canto que faz vibrar,
Todas as almas,
De crenças,
E idealismos desiguais...
É o canto da liberdade,
Que está penetrando,
Em todos os ouvidos..."
E caso elas tenham uma dificuldade existencial para a compreensão desse tipo de literatura sempre se pode, para não deixar duvidas em suas cabeças, invocar a fala da Pitty: