Júlio José Chiavenato diz algo interessante:
"Abomino esse negócio de literatura "infanto-juvenil". Literatura é ou não é. Existem as gradações, ninguém nasceu Machado de Assis. Mas literatura é ou não é."
Eu concordo amplamente com ele, literatura é ou não é, e Doce Manuel, um pequeno romance escrito por Chiavenato só pode ser classificado com um livro delicioso, me apaixonei por ele a primeira vista, logo na primeira linha: "Nem cravo nem canela. Pretinha." (pg. 7).
Foi amor a primeira vista, em um país onde chamar alguém de negro é ofensa, pq o negro está simbolicamente associado a tantas coisas não tão boas que o próprio negro não gosta de se reconhecer como tal e comumente se embraquece de várias formas e é muito comum que homens e mulheres de cor prefiram ser morenos e morenas, mestiços, mulatos, qualquer coisa menos negros e negras é muito lindo ver um autor começar a descrever o seu personagem como pretinha e a partir daí construa um personagem incrível, maravilhoso, realmente doce! Realmente é muito dificil colocar defeito nessa obra!
E se já é tempo de desconstruir essa imagem de que o negro é feio e de que ser negro é ruim, tudo bem que se pode dizer que no Brasil a essa altura do campeonato ninguém é realmente preto ou branco, azul ou vermelho, nós somos misturados demais, mestiços mesmo.
Mas, seria hipócrisia gravissima dizer que não existem preconceitos de cor no Brasil, que não há diferença entre ter a pele negra e a pele branca e a começar por minhas experiências pessoais, passando pelas experiencias de amigos e amigas e terminando com as leituras feitas na area, posso ver claramente que existe muita diferença entre ser branco e ser negro no Brasil.
E se essa relação entre homens e mulheres negros e negras e homens e mulheres de cor clara é marcada por diversos preconceitos, que começam nos descaminhos da história e culminam com práticas sociais, Chiavenato dá com Manuela mais um passo para desconstruir no Brasil a ideia de que ser negro é ruim. Se homens e mulheres de cor tem uma história de dificuldades, trabalho e sofrimentos junto com essa história de opressão existe uma história de resistência, sobrevivencia, lutas e vitórias nos mais diversos lugares da vida social...
Se houve opressão houve também resistência e entre o Zumbi e o Pai João, homens e mulheres de cor viveram uma história da qual todos podemos nos orgulhar, uma história que a personagem Manuela encarna muito bem, uma história que é de todos nós.
Ao compor sua personagem o que Chiavenato mais faz é fugir de alguns estereótipos, Manuela é inteligente, possui um raciocínio rápido, é determinada, trabalha duro e estuda pesado todos os dias... Ela encara a vida de frente, enchegar uma oportunidade e se esforça para aproveitar essa oportunidade. Ela tem força e ternura e apesar das dificuldade que passa em sua rotina, que não são poucas, vai lutando e conquistando espaços.
Ela estuda em uma escola pública que tem uma caracteristica peculiar, pela manhã estudam na escola os filhos da "burguesia", crianças de classe média, e a tarde as crianças da periferia. Por uma sucessão de acasos e coisas do gênero Manuela acaba indo estudar no horário da manhã, então ela se torna "a negra da manhã" (pg. 18), e ela segue estudando de maneira que "Dez anos depois, com um metro e oitenta e oito, está no segundo colegial. Já não a estranham. Só que Manuela sabe 'Eles me aceitam, tudo bem, mas sou a negra da manhã." (pg. 18). E essa menina, ao contrario do que alguns pensam não é traumatizada, afinal, nas linhas do pensamento da própria Manuela, "Pobreza não é trauma... Se morre alguém, fico triste, mas não me abalo. O que me angustia é viver como bicho. Pior que bicho, tem cachorro que... A miséria é que deprime." (pg. 8,9).
A menina é forte, perdeu a mãe, trabalha para sustentar o irmão, estuda, cuida de uma tia velha, leva a vida como pode, é orgulhosa, firme, mas também se abate e tem um ponto chave da história que a menina leva um tombo da vida e desse tombo nasce uma queda que quase leva nossa pequena heroína de todos os dias a quase desistir, mas não final das contas ela recebe a ajuda bem quista, a ajuda necessária. Ninguém consegue vencer a miséria sozinho, não existem super-humanos e não é o caso dessa heroína, ela não é uma super humana, acima do bem e do mal, se ela não é um Pai João manso e conformado, também não é uma reencarnação de Zumbi lutando com a força dos orixás acima do bem e do mal.
No final das contas, Doce Manuela é um livro escrito por alguém muito antenado com as discussões a cerca da história do Negro no Brasil, da História e Cultura Afro-brasileira e da própria realidade brasileira, muito bem escrito, muito bem pensado, carregado de várias discussões super interessantes, tais como: o papel da escola na vida dos sujeitos, o papel do professor, o peso do discurso jornalistico na sociedade, a importância da prática de algum esporte dentro da escola, as leis, o comportamento do poder publico e etc... tudo isso em um livrinho de 125 páginas... Fiquei tão apaixonada quanto absurdada com essa história... tanto que vale um post, dois, três...
E embora o livro esteja classificado como literatura infanto-juvenil, ele realmente é LITERATURA e faz tudo que um livro tem que fazer, ele nos convida a pensar o mundo que nos cerca, a nossa realidade e o que a sustenta fazendo um convite intelectual a nos posicionar-mos a tentar-mos mudar, nos reinventar... A história de Manuela é a história de tantas meninas e meninos, negros e brancos, é uma história encantadora, não tem o final de novela das oito, não é uma epopeia... é apenas uma história linda, sem fins dignos de princesa da Disney e nem de heroína global, aqui não temos uma Helena.
E sobre Júlio José Chiavenato, sobre o qual eu poderia escrever muita coisa também, que é jornalista, auto-didata e que escreveu o livro "Genocídio Americano - A Guerra do Paraguai" (Brasiliense), questionando a história oficial do conflito, um livro de 1979, ou seja, já foi amplamente criticado, mas que oferece uma visão alternativa do conflito na qual nós não somos heróis, sobre ele deixo as palavras dele e quem quizer saber mais o linck de uma materia da
Folha Online:
"... sou uma Manuela da vida. Apenas não tive a sorte de fechar o set, fazer o ponto final. Taí: é horrível escrever sobre a gente. Deu a entender que espero um vitória, uma conquista. Nada disso.
O que espero é um mundo em que o amor e a esperança vençam. Isso não depende da literatura, nem que eu ou você fechemos o set. Depende de toda uma mudança das estruturas, e tome etc., etc. e etc."
(pg. 128).
Referencia:
CHIAVENATO, Júlio José. Doce Manuela. São Paulo: Moderna, 2003.
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PS.: Quase esqueci de agradecer a Go por ter me emprestado o livro: Valeu, adorei a leitura!!!