Nos últimos tempos a leitura de textos voltados para a História e a escrita tem consumido grande parte de meus dias. De forma que tem sido muito mais frequente na rotina desse blog que eu fale de livros ou comece uma reflexão a partir de uma leitura de algum livro.
E bem, hoje isso vai se repetir um pouco... Perdão pela repetição!
Mas, como minha pesquisa de mestrado diz respeito as ultimas décadas do Império do Brasil fui obrigada a me deparar com o livro
"O pântano e o riacho" de Raimundo Arrais. O livro é resultado da pesquisa de doutoramento dele feita na USP e tenta tratar das transformações pelas quais passou o espaço urbano do Recife ao longo do século XIX.
Para tanto, ele invoca textos clássicos sobre a cidade durante o século XIX. Ele analisa textos produzidos durante a primeira métade o século XX por Pereira da Costa, Mario Sette e Gilberto Freyre, entre outros. Aliás a melhor parte do livro é quando ele fala sobre os autores e a forma como eles desenharam a cidade do Recife em seus discursos.
Enfim, no final do livro ele vai falando o que não deu certo para a cidade, o que foi sonhado e não concretizado e fala sobre os subúrbios da cidade. É certo que no inicio do século XIX há um certo romantismo na visão que os intelectuais tinham do subúrbio.
Carlos Pena Filho, na primeira metade do século XX, falou assim dos subúrbios da cidade:
"Nos subúrbios coloridos
em que a cidade se estende,
em seus longos arredores,
onde, a cada instante nasce
uma rosa de papel,
caminham as tecelãs.
Restos de amor nos cabelos
que ocultam por ocultar,
levam a noite no ventre
e a madrugada no olhar..."
Quase cinquenta anos depois muitas águas rolaram debaixo das pontes da velha cidade do Recife, houve os milhares de retirantes vindos dos diversos estados do Nordeste para cá, houve a expulsão da população do centro para o subúrbio, pseudos-revoluções, ditadura, resseção, crise, caos... Enquanto as áreas que pertenciam a velhos engenhos foram sendo lentamente ocupadas e a cidade foi crescendo meio loucamente.
Se eu fosse descrever Recife eu roubaria as palavras de Terry Pratchett usadas para descrever Ankh-Morpork em
"A Magia de Holy Wood":
"Os poetas a muito desistiram de tentar descrever a cidade. Os mais espertos disfarçam. Dizem que... bem... talvez ela seja malcheirosa, talvez ela seja superpovoada, talvez ela seja um pouco como o Inferno seria se controlassem o fogo que queima por lá e formassem um curral cheio de vacas com problemas intestinais durante um ano. Mas é preciso admitir que ela é cheia de vida pura, dinâmica e vibrante. E é verdade, apesar de serem os poetas quem dizem isso. E as pessoas que não são poetas dizem: e daí? Os colchões também tendem a ser cheios de vida, mais ninguém escreve odes a eles. Os cidadãos odeiam morar lá e, se são obrigados a mudar para outra cidade por causa do trabalho, por aventura ou, o que é mais comum, para esperar que algum astatuto de limitações expire, não vem a hora de voltar para que possam sentir um pouco mais do prazer de odiar viver lá. Eles colocam adesivos na parte de trás da carroça dizendo: "Ankh-Morpork - Odeia-a ou deixe-a"...
(...) Ela sobreviveu a enchentes, incêndios, multidões, revoluções e dragões."
(Terry Pratchett, A magia de Holy Wood, p. 12-13)
A cidade de Recife inteira é complicada, louca, maravilhosamente viva e cheia de problemas. Meu bairro é cheio de problemas, se eu os fosse listar eu precisaria de um novo blog só para isso. A parte isso, destaco uma parte do texto de "O pântano e o Riacho" no qual Raimundo Arrais fala das áreas elevadas do Recife:
"Ali, o que era o romantismo de subúrbio virou desumanidade e medo. Na visão noturna de quem entra no Recife, são aquelas luzes mínimas cintilando no fio frágil das formas subindo e descendo os morros descalvados da primitiva mata. Na visão diurna, impõe-se o anti-cartão postal dos panoramas da Grande Recife: a imagem da iminência das tragédias coletivas nos véus negros das lonas distribuídas pelo governo para cobrir os trechos das ribanceiras e impedir que, fustigados pela chuva, desçam rolando, no esbarrancamento desse aglomerado indistinto de paredes, alicerces, telhas e tralhas domésticas."
(ARRAIS, Raimundo, O pântano e o riacho: a formação do espaço publico no Recife do século XIX, pg. 516, 517)
Caraca meu irmão!!! Quantas expressões pejorativas em uma única descrição: desumanidade, medo, anti-cartão postal, tragédias coletivas... Ele chamou meus livros de tralha ou é impressão minha?!?!
Tá, eu não sou Gabriela, mas vou usar uma fala dela: "Gostei não!" e em minhas próprias palavras: "Assim ofende!".
Nós somos pessoas certo! Somos humanidade e não desumanidade. Todas as pessoas do mundo vivem a iminência da tragédia coletiva. Medo? Falta de segurança é um problema da cidade inteira e não apenas dos suburbios da cidade, todo mundo vive com medo nos dias de hoje. Sinceramente eu me sinto muito mais segura quando o ônibus dobra a Avenida Norte e eu me vejo no meu bairro, respiro, estou em casa. E definitivamente tralha é uma palavra ofensiva para designar os bens adquiridos através de uma vida de trabalho duro e constante.
Me deu tanta raiva ler essa passagem do livro que não pude evitar vim aqui e escrever! Não é que o suburbio seja o paraíso na terra, não é! Muita coisa precisa ser mudada por aqui, há o descaso do poder público, há esgotos a céu aberto, tem lugares nos quais chega a conta de água e não chega água, os problemas urbanidade são muitos mesmoooo com todos os "oos" do mundo.
Mas não consigo deixa de pensar que nessa passagem o Raimundo Arraes pareceu o Caco Antibes dando uma de poeta e não posso deixa de exclamar: "Qualé cara! Isso é bullying sábia?".