Alguns livros são tão incríveis e exercem sobre nós um fascínio tão grande que uma leitura não basta. É como se eles tivesse voz e desejos próprios e de tempo em tempo simplesmente nos chamam para voltar e desesperadamente precisamos ir lá e reler por pura necessidade existencial.
"Aventuras de Alice no País das Maravilhas" e
"Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá" se encontra entre os livros que mais tenho relido nos últimos 15 anos e por incrível que pareça sempre me pego achando uma coisa diferente da que achei antes. Invariavelmente tenho concluído a leitura do texto do Lewis Carroll dizendo:
"Agora eu entendi a história!", para depois de 2, 3 ou 5 anos reler e dizer:
"Nossa! Como isso estava aqui e eu não vi?".
Não sei se os livros são possuidores do dom da transmutação ou se as pessoas se transformam através dos anos, talvez sejam os dois, livros e humanos, seres em constante processo de mutação. Quando mergulhei com Alice na
"Toca do Coelho" rumo ao
"País das Maravilhas" e
"Através do Espelho" pela primeira vez senti uma aflição terrível. Tudo nos livros tinha tons de pesadelo, ninguém parecia dizer coisa com coisa, todos respondiam com perguntas... Nossa, quão grande foi meu alivio quando vi a menina acordar! Me senti acordando com e ela e decidi voltar a ler novamente sem a aflição de não saber se aquilo era real ou não.
Incrível como a gente se engana nessa vida! Viajar pelo
Mundo das Maravilhas e
Através do Espelho sem aflição não existe e não teria a minima graça. Se for para não me sentir aflita com as questões existenciais propostas pelos personagens é melhor nem ir.
Essa nova leitura da obra de Lewis Carroll colocou em grande evidencia para mim o quanto ele era critico a uma educação escolar meramente informativa. Enquanto cai na
"Toca do Coelho" Alice tenta rememorar as coisas aprendidas na escola, informações enciclopédicas empurradas nela goela adentro, e mostra o quanto tentou digerir tudo e quão poucos resultados trouxeram esse esforço. Indo de encontro a forma como a educação infantil funcionava em meados do século XIX os habitantes do
"País das Maravilhas" não empurram em Alice formulas e informações prontas, eles questionam, instigam e empurram a menina para o caminho da experiência.
Geralmente quando temos uma criança sob nossa tutela a sanidade nos leva a oferecer a ela orientações muito precisas, baseadas em nossas experiencias, de como ela deve agir ou não para obter sucesso. Porém, as pessoas com as quais Alice se encontra no mundo além da
"Toca do Coelho" são loucas, elas não tem resposta nem para suas próprias charadas quanto mais para as da menina! Para aprender ela precisa encontrar pessoas, experimentar, caminhar, desbravar, ouvir, falar, correr, recitar as poesias...
Também é imperativo falar dos encontros da menina com os habitantes do estranho mundo no qual ela cai. A começar pela exótica
Lagarta com seu narguilé que não pergunta:
"Qual seu nome?", mas
"Quem é você?". Em um dia normal essa já não é uma pergunta das melhores, imagina em um dia no qual você diminuiu, cresceu, falou com animais, foi confundida com outra pessoa, foi pra lá e pra cá meio sem rumo em um lugar desconhecido? Difícil! Alice se enerva, quer ir embora, da meia-volta, MAS a Lagarta não deixa:
"Volte!"chamou a Lagarta. "Tenho uma coisa importante para dizer!"
A menina se vira e volta para ouvir:
"Controle-se", disse a Lagarta.
Já perdi as contas de quantas vezes na vida precisei me controlar para encontrar alguma ajuda para um problema difícil. No entanto, quando a Lagarta disse isso, fiquei na duvida entre chorar ou rir. Gente, isso é trolagem pura! Todos os outros encontros da criança parecem ser pontuados por esse tipo de sacanagem
Na frente da casa da Duquesa, Alice pergunta ao Lacaio:
"Como faço para entrar?". O danado simplesmente tasca nela um:
"Mas, afinal, você deve entrar? Essa é a primeira pergunta." Ela se irrita, resmunga e tudo e tal e pergunta:
"Mas o que devo fazer?". Ao que ele responde:
"O que quiser...". Junto com o fabuloso Gato de Cheshire, com o querido Chapeleiro Maluco, a Lebre de Março, o Lacaio com cara de sapo está no roll dos meus personagens favoritos.
Ainda sobre o roll dos personagens favoritos preciso reafirmar o quanto acho sensacional o dialogo de Alice com o Bichano de Cheshire:
"Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui?"
"Depende bastante de para onde quer ir", respondeu o Gato.
"Não me importa muito para onde", disse Alice.
"Então não importa que caminho tome", disse o Gato.
"Contanto que eu chegue a algum lugar", Alice acrescentou a guisa de explicação.
"Oh, isso você certamente vai conseguir", afirmou o Gato, "desde que ande o bastante." (pag. 76/77)
Novamente não sei se é para rir ou chorar... Depois dessa só posso deixar registrado que o esforço da minha vida consiste em
andar o bastante.
E o que fazer quando a gente escuta/ler o Chapeleiro falando do Tempo?
"Se você conhecesse o Tempo tão bem quanto eu falaria dele com mais respeito." (pag. 84)
Estou a trinta anos convivendo com o Tempo e cada ano tenho por ele mais respeito. Ele não é linear, constante ou medido tão facilmente quanto o relógio comum faz supor que seja. É conveniente acreditar que um dia tem 24 horas e um ano 365 dias, mas quem viveu suficiente sabe o quanto há anos que não cabem em um dia e dias que não cabem em um ano. Há eternidades que acabam em segundos e segundos que duram uma eternidade.
Apesar de ter a impressão de todos os habitantes do País das Maravilhas serem confusos e pouco dado a respostas fáceis, também tenho a sensação de não existir um senso de perigo no mundo abaixo da Toca do Coelho ou uma urgência na viagem feita pela menina. Bem diferente da trajetória dela
"Através do Espelho", durante essa leitura se impregnou em mim uma sensação de insegurança profunda.
No
"Outro Lado do Espero" a criança mais obtêm ajuda, pessoas para caminhar com ela e menos perguntas isso tudo parece existir para equilibrar um perigo real sempre a espreita. Alice parece correr o risco constante de se perder até mesmo de si mesma. Lembrei muito do mundo do
"Outro Lado da Muralha" criado por Neil Gaiman que aparece em obras como
"Stardust: o mistério da estrela" e
"Os livros da magia" entre outros. No mundo invertido do espelho é possível encontrar personagens lendárias tradicionais saídos do folclore inglês seus contos populares, poesias e canções. Ela ainda precisa entrar na floresta e enfrentar trilhas perigosas para sua memória e identidade.
Gosto muito das considerações da
Rainha Vermelha:
"... você tem que correr o mais que pode para continuar no mesmo lugar. Se quiser ir a alguma outra parte, tem de correr no mínimo duas vezes mais rápido!" (pag. 186).
"... lembre-se de quem você é." ( pág. 188)
Só Deus sabe o quanto uma vez dentro de uma floresta pode ser fácil esquecer quem se é ou seder a tentação se deixar seduzir pessoas e situações prontas a nos levar a esquecer nosso nome, origem, desejos e sonhos. Existe alguém que vez ou outra não foi convidado a barganhar qualquer parte de si em troca de uma ninharia e precisou se agarrar em um amigo tal como Alice se agarrou na Corsa para atravessar o bosque "em que as coisas não tem nome"?
E se eu gostei da Rainha Vermelha novamente me apaixonei pela generosa Rainha Branca. Quando Alice se desespera ela não oferece consolos vãos, doces ou ilusões, simplesmente diz:
"Considere a menina grande que você é. Considere a longa distância que percorreu hoje. Considere que horas são..." (pág. 227)
Não é sem motivos que o Gato questiona Alice em relação a quem ela é. De muitas formas, em momentos de desespero, o que nos salva é a possibilidade de considerarmos quem somos. Aliás, também acho delicioso o fato da Rainha Branca colocar em evidencia a distância percorrida, até mesmo as horas.
Desse encontro também destaco as coisas faladas a respeito de acreditar no
impossível:
Alice riu. "Não adianta tentar", disse; "não se pode acreditar em coisas impossíveis.""Com certeza não tem muita prática", disse a Rainha. "Quando eu era da sua idade, sempre praticava meia hora por dia. Ora algumas vezes cheguei a acreditar em até seis coisas impossíveis antes do café da manhã..." (pág. 227/228)
Sei o quanto esse texto já está quilométrico, mas ainda gostaria de destacar o encontro da Alice com a Ovelha e o Unicórnio, pois ambos disseram coisas sobre as quais me pego pensando com constância.
"Pode olhar para a sua frente, e para os dois lados, se quiser", disse a Ovelha, "mas não pode olhar para tudo a sua voltar... a menos que tenha olhos na nuca." (pág. 230).
"Bem, agora que nos vimos um ao outro", disse o Unicórnio, "se acreditar em mim, vou acreditar em você..." (pág. 264).
Por todos os motivos aqui citados, e outros tantos não citados, só posso concluir esse texto gigantesco reafirmando meu amor pela obra de Lewis Carroll e meu desejo de continuar sendo um pouco Alice na vida. Ainda quero forças para consegui seguir o Coelho Branco, mergulhar na toca, chegar um mundo de maravilhas ou encontrar uma forma de ir através do Espelho para um mundo invertido perigoso mas cheio de pessoas generosas capazes de ajudar qualquer um a acreditar em si, no seu nome e na possibilidade do impossível.
Ah, fiz a releitura desse clássico em conjunto com o Alexandre do blog
#DoQueEuLeio. Clique
AQUI para conferir a resenha dele, bem mais sintética que a minha.