Entre as leituras que fiz ao longo de 2024 sem dúvida nenhuma "O Feiticeiro de Terramar" e "As Tumbas de Atuan" Ursula Kroeber Le Guin se destacam de uma forma única como símbolo de excelência, do melhor que a literatura pode oferecer a pessoa leitora em termos de aventura envolvente e reflexiva. Devorei ambos os livros, um atrás do outro em questão de poucos dias e não posso deixar esse ano se findar sem ao menos falar um pouco sobre eles.
Em "O Feiticeiro de Terramar" Ursula nos apresenta a história de Ged de sua infância até a vida adulta em um mundo repleto de ilhas espalhadas pelo mar chamado Terramar. Nesse mundo insular as pessoas vivem suas vidas dentro de um padrão que lembra um pouco o Planeta Terra antes da consolidação dos Estados Absolutistas Europeus e do Processo de Colonização da América e seus desdobramentos. As pessoas em Terramar tem seus conflitos, vivem suas vidas, são boas, más, irritantes e generosas, mas vivem em paz, aqui e ali um povo entra em conflito com o outro e surgem batalhas, mas não há nenhuma guerra generalizada acontecendo ou por acontecer, não há nenhum povo querendo colonizar o outro, é numa dessas ilhas deste mundo que surge nosso Feiticeiro.
Ged começa a vida como filho de um forjador de bronze, ao mostrar talento para a magia, passa a ser ensinado pela tia que o ensina o pouco que sabe e sua história começa a ganhar vulto quando ele quase morre depois de usar muita magia com o objetivo de proteger a população de sua ilha da invasão de estrangeiros. Em vez de matá-lo, no entanto, sua bravura e energia chamam a atenção de um Ogion, um mago maravilhoso e querido, que o adota e começa lhe ensinar a natureza da magia.
"Maturidade é paciência. Maestria é paciência multiplicada por nove." (Ogion, pág. 28)
Ursula Le Guin tem uma forma de escrever muito própria, ela não é alvoroçada, não se apressa, não cria ou nos prende pelo suspense. Ela é tranquila, envolvente, simples, fácil de levar, a gente vai lendo e avançando na história quase sem sentir. Já Ged, nosso protagonista, é alvoroçado, curioso, tão sedento por conhecimento e poder que chega a ser precipitado. Nem um professor sábio e maravilhoso como Ogion consegue deter a violência da pressa dele em conhecer mais e mais, mesmo antes do tempo necessário e é assim, nesse desejo desenfreado que nosso Feiticeiro liberta uma perigosa Sombra em seu mundo.
"Quando você reconhecer o quadrifólio em todas as estações, raiz, folha e flor, pela visão, pelo cheiro e pela semente, poderá aprender o verdadeiro nome dele a partir do conhecimento do ser: isso é mais do que a utilidade. Afinal, qual é a sua utilidade? Ou a minha? A Montanha de Gont é útil, ou o Mar Aberto? - Ogion caminho cerca de oitocentos metros e disse, por fim: - Para ouvir, é preciso ficar em silêncio." (pág. 28)
Ler "O Feiticeiro de Terramar" é acompanhar a jornada de amadurecimento de Ged, como ele aprendeu a conhecer a si mesmo, a se responsabilizar pelos seus atos, entender os seus medos e ir atrás do enfrentamento e superação do mal que ele criou. Trata-se de um livro muito bonito, completo em si mesmo, construído através de uma escrita elegante onde as palavras não faltam ou sobram. Nosso protagonista viaja muito e nós viajamos com ele e vamos desbravando esse mundo, suas regras, sua tradição e a forma como se lida com a magia. É uma história onde não existe vilania descarada ou guerra, as lutas a serem enfrentadas e vencidas são mais internas que externas, a aventura é aquela que marca toda vida humana e trata-se de amadurecer no enfrentamento do bem e do mal que criamos.
Apesar de "O Feiticeiro de Terramar" ser um livro cuja história termina em si mesmo, os últimos parágrafos citam uma lista de aventuras de Ged que despertaram a curiosidade das pessoas leitoras e assim, em vez de escrever um livro único, Ursula acabou dando origem a uma série de livros chamada de "Ciclo Terramar" do qual "As Tumbas de Atuam" é o vol. 2. Honestamente, esperava dar um tempo nesse universo antes de seguir, mas peguei o livro para dar uma olhadinha e terminei sendo tomada por uma febre de curiosidade e entusiasmo que me levou a devorar o livro em um dia e uma madrugada.
Em "As Tumbas de Atuam" vamos sair do universo dos magos e suas Magias para mergulhar nos das Sacerdotisas e seus Segredos. Chegamos no arquipélago localizado no Nordeste de Terramar chamado de "As Terras de Kargad" onde um grupo de mulheres passam a vida adorando as Forças Ocultas e Inominadas da Terra sob a liderança de uma Suma-Sacerdotisa sem nome, sem família, chamada de "Arha, a Devorada". Sempre que uma "Arha, a Devorada" morre, procura-se em todo arquipélago uma criança nascida no mesmo dia e hora de seu falecimento e ela se torna sua sucessora sendo tirada dos braços da sua família no início da segunda parte da infância para aprender os rituais e costumes capazes de manter as Forças Inominadas da Terra em paz dentro de um labirinto profundo e escuro chamado de "Tumbas de Atuam".
Tenar, a mais nova "Arha, a Devorada", é a protagonista desse vol. 2 do Ciclo Terramar. É a jornada de amadurecimento dela como sacerdotisa dos Velhos Deuses Inominados que vamos acompanhar ao longo deste livro. Ela é separada de sua família e cresce entre mulheres cujo conhecimento é passado de forma oral e vivem isoladas em uma ilha produzindo tudo que consomem e aprendendo a dançar e cantar para agradar forças sombrias e perigosas.
Se Ged passou sua infância dentro dentro de uma vida comunitária entre homens, mulheres e crianças de ambos os sexos aprendendo a ser pastor e depois a ser feiticeiro sob a tutela de uma pessoa benevolente como Ogion, Tenar viveu uma vida de isolamento, não sabe quem são seus pais, suas irmãs de claustro são mulheres duras que educam dentro de uma austeridade monástica, treinando sua memória, suas habilidades de canto, sua capacidade de obter a própria comida e produzir sua própria roupa sem maldade, mas também sem muita ternura.
Com sua vaidade, Ged produz uma Sombra a qual precisa vencer, sem defesa nenhuma, por nascer em uma determinada data e hora, Tenar é destinada pela tradição de seu povo a viver uma vida de sombras e também precisará vencer. Ged é sujeito de sua história do inicio ao fim, ele cria o seu inimigo e precisa aprender a derrota-lo, Tenar não, ela se torna protagonista de uma novela cuja trama foi construída por outros. O grande desafio de nossa sacerdotisa é vencer a alienação na qual foi criada e ir atrás de um destino próprio construído por ela mesma. Nesse desafio, por uma coincidência do destino, ela acaba sendo ajudada pelo Feiticeiro.
Honestamente, considero "As Tumbas de Atuam" menos brilhante que "O Feiticeiro de Terramar". A Ursula, como uma mulher singrando os mares do gênero fantasia, absolutamente dominado por homens, tropeçou muito em visões machistas sobre como mulheres se comportam umas com as outras quando unidas por uma irmandade e reproduziu valores e ideias machistas até não poder. Na reta final Ged rouba completamente o protagonismo de Tenar, pressionada ela esquece o treinamento de uma vida inteira em vez de se socorrer nele como acontece com o Feiticeiro, fica perdida e acaba sendo mais salva por ele. Em algum momento ela também o salva, mas não achei a equivalência justa entre os atos dele e os dela.
No "Ciclo Terramar" a Ursula tenta fugir de vários estereótipos e clichês de livros de fantasia histórias girando em torno de guerras, protagonistas majoritariamente brancos, altos e loiros, a maior parte dos personagens, inclusive o protagonista, são negros, mas tanto no vol. 1 quando no vol. 2 ela não conseguiu fugir de oferecer as suas protagonistas papeis de gênero um tanto estereotipados e bem machistas.
Até aqui seu mundo é muito masculino, com homens educando homens para a Amplitude da Liberdade e mulheres educando mulheres para o Isolamento da Clausura., porém, essa história não acaba por aqui, temos mais alguns volumes dessa série para ler e quero descobrir se a autora vence os limites desse gênero e consegui e além da visão de papeis masculinos e femininos na qual foi educada.
que edições bonitas. beijos, pedrita
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