sábado, 27 de julho de 2024

"A Parábola dos Talentos" da Octavia E. Butler


Depois de ler o maravilhoso "A Parábola do Semeador" não me aguentei e corri na estante para pegar a continuação da história, "A Parábola dos Talentos", para saber mais sobre a as venturas e desventuras de Laurem, seus amigos, a comunidade que eles estavam formando e sua nova religião. Ainda estou absurdada com o fato da Octavia E. Butler ter conseguido não só manter o nível de excelência como elevar a qualidade de seu trabalho. Inexplicável uma obra tão visionária, cirúrgica em suas analises e previsões para o futuro e perfeita em sua execução não constar em várias listas de 100 melhores livros do século XX.

Apesar de ter sido um livro de leitura rápida, foi difícil escrever sobre ele. Muitas das coisas sobre as quais me senti instigada a comentar revelam detalhes da histórias que você pode desejar conhecer por si durante o momento da leitura. Esse texto talvez seja mais interesse a quem já tenha lido o livro ou a quem não se incomoda em conhecer detalhes sobre as histórias antes de lê-las. Para quem quer manter a sensação de surpresa talvez seja melhor passar reto.

No vol. 2 da "Duologia Semente da Terra" vamos acompanhar além das reviravoltas da protagonista, Lauren Oya Olamina, uma virada no gênero narrativo utilizado pela Octavia E. Butler para contar sua história. "A Parábola do Semeador", vol. 1, é um diário, "A Parábola dos Talentos" é uma biografia organizada pela Larkin, filha da Olamina, a qual mistura relatos retirados dos diário da mãe com falas de outros personagens alinhavados pelas considerações dela para contar uma história.


A partir do ano de 2090 a Larkin vai alternando trechos do diário de sua mãe com seus sucessos, fracassos, tragédias e glórias às suas opiniões. A figura da Olamina é muito apaixonante, Terminei "A Parábola do Semeador" encantada com a garota corajosa contando enquanto ia vivendo a experiência de perceber a fragilidade da vida dentro do muros de um bairro fechado, sua saída da casa de seus pais em meio a um mundo mergulhado nas chamas de apocalipse climático e social. A visão da Larkin é totalmente oposta a minha, inclusive é pesadíssima, muito negativa, chega a ser trágico uma filha perceber a mãe dessa forma.

Umas das muitas coisas a alimentar o furor com o qual devorei as mais de 500 páginas desse volume foi descobrir como a Olamina ganhou o mundo e perdeu sua tão amada filha ao mesmo tempo e de uma forma tão atroz. Foi muito interessante, instrutivo e devastador acompanhar essa trajetória de conquista profissional e perda pessoal. No mundo imaginado pela Octavia entre o fim da década de 20 do século XXI e o início da década de 30 do mesmo século, surge um formato de cristianismo absolutamente extremista, liderado por uma denominação chamada "Igreja América Cristã" com um tom entre neopentecostal que domina corações e mentes resgatando o espírito destrutivo das Cruzadas para perseguir diferentes. Os devotos dessa corrente do cristianismo percebem os devotos da nova religião criada pela Lauren Olamina como membros de uma seita pagã e caem sobre eles de forma bem atroz.
"A Ku Klux Klan usava cruzes (e as queimava também). Os nazistas usavam a suástica, que é uma espécie de cruz, mas acho que não a levavam no peito. Havia cruzes em todas as partes durante a Inquisição e, antes disso, durante as Cruzadas. Então agora temos outro grupo que usa cruzes e assassina pessoas. Os simpatizantes de Jarret insistem que é uma volta a uma época antiga, mais 'simples'. O agora não serve para ele. A tolerância não serve para ele. Ele quer levar todos nós de volta a uma época mágica na qual todo mundo acreditava no mesmo Deus, o adorava da mesma maneira e compreendia que sua segurança no universo dependia de realizar os mesmo rituais religiosos e de esmagar todo mundo que fosse diferente. Nunca houve um tempo assim nesse país." (pág. 33)
Atacados pelos membros dessa igreja, Olamina e seus amigos sofrem e ao mesmo tempo se lançam em uma aventura de resistência contra a opressão. Os valores desenvolvidos pela Semente da Terra enquanto religião ajudam muito todos os membros do grupo a não surtarem, manterem a cabeça o mais sã possível enquanto enfrentam todo tipo de violação e exploração. Partindo do preceito: "Deus é Mudança. Molde Deus." eles se organizam, atravessam os processos destrutivos, aprendem com ele e tentam construir algo novo, um DESTINO novo para si e para a humanidade.
"O caos
É a face mais perigosa de Deus...
Amorfa, turva, faminta.
Molde o caos:
Molde Deus.
Aja.

Mude a velocidade
Ou a direção da Mudança.
Varie a extensão da Mudança.
Transmute o impacto da Mudança.
Desfrute a Mudança.
Use-a.
Se adapte e cresça.
- Semente da Terra: os livros dos vivos"
(pág. 37)
Quando os corações e mentes das pessoas são dominados por ideias extremistas, os pequenos, os diferentes, os frágeis se tornam alvos, potenciais vítimas fáceis para serem violentadas e exploradas. Basta olhar a História da Humanidade na Terra para perceber o quanto esses ciclos se repetiram e continuam se repetindo. Nesse momento muitos seres humanos estão enfrentados desafios semelhantes aos enfrentado pela Olamina e sua comunidade. Tendo sua comunidade invadida por pessoas inflamadas pelo discurso religioso, sendo separados de forma permanente ou intermitente de seus filhos, tendo que se organizar e reorganizar dentro de cenários de caos, horror, morte e exploração. Quem acompanha as notícias do nosso mundo sabe o quanto está informado pode, e com frequência é, uma experiência devastadora.

Uma coisa muito impactante de observar em "A Parábola dos Talentos" é como a fé pode tanto ser algo que nos organiza para a vida em sociedade, nos ajuda a catalisar a nossa energia de forma positiva e nos orienta para a conquista de nossos objetivos como pode ser algo alienante, limitante, violento e atroz. Enquanto conhecemos como a Olamina vence seus desafios também vamos descobrindo como a filha dela se tornou alguém cruel sempre pronta para culpar sua mãe pelas coisas ruins que ocorreram em sua vida.

A vida de Larkin é terrível, mas nenhuma das coisas horríveis às quais ela foi submetida ocorreram devido à ação ou inação de sua mãe e, no entanto o processo de alienação moral ao qual ela foi submetida conseguiu ser vitorioso ao ponto dela deposita todo rancor de seu coração na única pessoa capaz de ser considerada tão vítima quanto ela.
"A América Cristão era, a princípio, muito mais um refúgio para os ignorantes e intolerantes do que deveria ter sido. Até mesmo pessoas que nunca agrediria nem queimariam outra pessoa de repente podia passar a tratar crianças órfãs ou sequestradas com crueldade, frieza e ar de superioridade.
[...]
Ficar calada era bom. Questionar era ruim. As crianças deveriam acreditar no que os mais velhos diziam a elas, e ficar satisfeitas em isso ser tudo o que precisavam saber. Se houve alguma brutalidade no modo como fui criada, foi essa. A fé burra era boa. Pensar e questionar era ruim. Eu tinha que ser como um cordeiro no rebanho de Cristo... ou no rebanho de Jarret. Tinha que ficar calada e ser submissa. Depois que aprendi isso, minha infância se tornou confortável, pelo menos fisicamente." (pág. 348)

Crescendo dentro da Igreja Assembleia de Deus do Recife, tive uma educação religiosa semelhante a da Larkin, poderia ter escrito essas palavras. Fui uma criança, adolescente e jovem adulta muito capaz de ler meus livros e construir meu pensamento crítico em relação ao mundo sendo bem quista na igreja por saber ser "calada e submissa". Não é uma violência fácil de suportar, é muito difícil crescer assim, nem todas as minhas amigas sobreviveram a essa experiência. Tenho rancor disso tudo, e, parafraseando a Natalia Ginzburg, é verdade que a certa altura da nossa vida molhamos os rancores no café da manhã, como biscoitos.

Tanto quanto foi aflitivo que foi acompanhar como a Larkin vai se tornando essa pessoa com uma visão tão horrível em relação a sua mãe foi inspirador observar a trajetória da Olamina rumo a concretização do Destino que ela forjou para si e para os seus. Acompanhando o amadurecimento da personagem através das páginas do seu diário, me peguei pensando muito na Anne Frank.

Se a Anne tivesse sobrevivido ao horror do Nazismo ela teria hoje a idade da Fernanda Montenegro, será que ela se tornaria uma mulher fascinante como a Olamina? Não consigo deixar de pensar nisso. Parece aleatório levantar essa questão, mas a Anne Frank assim como a Olamina começa seu diário em um dia de seu aniversário, ela fala de seu cotidiano em um mundo queimando nas chamas de um apocalipse social profundo. Amo a Anne Frank, minha amiga de adolescência, lembro de ler o "Diário de Anne Frank" sentada no batente da janela do quarto do meu irmão olhando o pôr do sol.

A Duologia "Semente da Terra" deveria estar entre os 100 melhores livros do século XX. É um trabalho incrível. A Octavia E. Butler foi muito criativa e ousada nas formas que ela escolheu para contar essa história. Ela nos presenteia com olhar aguçado para os possíveis papéis da religião na vida humana, como algo capaz de nos direcionar para além do céu ou nos prender nos subterrâneos do inferno. A escrita é primorosa, fluida e deliciosa de se ler. Genial! Um clássico por excelência!

2 comentários:

  1. eu não costumo ler continuações seguidas. acabo intercalando. eu tb falei de livro nessa semana. beijos, pedrita

    ResponderExcluir
  2. Olá, Jaci.

    Só li os dois primeiros parágrafos, para assegurar a minha surpresa, rsrs. Depois que ler este livro eu volto para ler a tua resenha. Não li os livros na ordem porque, como expliquei no primeiro post, os dois que li me foram dados. E o vendedor da livraria foi quem sugeriu a compra daqueles dois livros (pelo que me disseram). No lugar dele eu teria sugerido a duologia "A parábola...", obviamente. A primeira parte da história já é muito interessante, e é também espantosamente profética.
    Nós, que amamos os livros, sentimos uma grata felicidade, quando encontramos um livro assim, né? rsrs.

    Beijo

    ResponderExcluir