sábado, 20 de julho de 2024

"A Parábola do Semeador" de Octavia E. Butler


Sábado, 20 de julho de 2024

Tive meu sonhos recorrente na noite passada. Acho que era esperado. Ele acontece quando eu reluto - quando me debato dentro de uma prisão pessoal e tento fingir que nada incomum está acontecendo. Ele acontece quando tento ser a filha de meu pai.
Hoje é nosso aniversário - o meu décimo quinto e quinquagésimo quinto do meu pai. Amanhã, vou tentar deixá-lo contente - ele, a comunidade e Deus. Então, ontem à noite, sonhei com um lembrete de que tudo é mentira. [...] (pág. 12 de "A Parábola do Semeador")
As palavras acima não são minhas, mas sim o início do livro "A Parábola do Semeador", vol. 1 da "Duologia Semente da Terra", da Octavia E. Butler. E sim, este é um livro cuja história começa a ser contada a partir do dia de hoje, 20 de julho de 2024. A Octavia escreveu esse livro no início da década de 90 do século XX, mas a história começa exatamente na data de hoje, por isso, escolhi essa data para postar a resenha e se alguém decidir começar a ler esse livro exatamente hoje pode ser que esse alguém comece a ficar um tanto assombrado com a capacidade da autora de fazer previsões muito exatas sobre o atual estado não só dos Estados Unidos como do mundo inteiro.

Em "A Parábola do Semeador" somos apresentados a garota Lauren Oya Olamina através da escrita de seu diário iniciado em seu aniversário de 15 anos. Em sua escrita íntima Lauren se dá a conhecer e também nos apresenta a realidade política, social e econômica dos Estados Unidos da América no ano de 2024 quando a humanidade se encontra envolta em um cenário desolador. As mudanças climáticas causadas pelo Aquecimento Global mudaram totalmente os diversos climas do planeta, a inflação saiu totalmente de controle escalonando até ser surpreendente que dinheiro ainda tenha valor, as leis trabalhistas foram sendo cada vez mais flexibilizadas até chegar ao ponto das pessoas terem trabalho, mas não terem direitos e sendo assim se tornarem facilmente escravizáveis.

Na década de 20 do século XXI, onde a Lauren vive na ficção da Octávia E. Butler é assustadoramente parecida com a nossa década de 20 do século XXI. A disputa presidencial na qual um candidato de extrema direita com um discurso religioso, conservador, neoliberal ganha cada vez mais voz e vez na opinião pública me fez pensar na possibilidade da autora ter algum aparelho para antever o futuro. Quando o assunto era a visão desse presidente sobre direitos trabalhistas, lembrei lembrei automaticamente da fala de nosso ex-presidentes em Agosto de 2019 quando ele disse: "Um dia os trabalhadores vão ter que decidir entre todos os direitos e desemprego ou menos direitos e emprego." (Jair Messias Bolsonaro, pronunciamento em Agosto de 2019).

E sim, se alguém passar por aqui for a favor de menos direitos a classe trabalhadora que entra no mercado de trabalho apenas com sua força de trabalho, vou deixar meu alerta com professora de história que sou: "Todo trabalhador e trabalhadora que escolhe emprego sem direitos trabalhistas está perigosamente se afastando da Liberdade, pois trabalho sem direito tem nome e esse nome é ESCRAVIDÃO.".

Voltando a Lauren, ela é filha de um casal de professores universitários que vivem com sua família em um bairro no qual, para se proteger da violência, os moradores construíram um muro de ponta a ponta. Qualquer semelhança com nossos condomínios fechados com vigilância 24 horas não é mera coincidência. Dentro desses muros a comunidade se organiza, cria vínculos de solidariedade, se apoia mutuamente e desenvolve estratégias para sobreviver à situação catastrófica do planeta.

Além de professor, o pai da Lauren também é pastor, mas quando nós conhecemos nossa protagonista ela está criando uma nova religião, a "Semente da Terra" da qual emerge um novo Deus Único. Se o Deus único Judaico/Cristão/Mulçumano é imutável, o da "Semente da Terra" é a Mudança.
"Tudo que você toca
Você Muda.
Tudo que você Muda
Muda você.
A única verdade perene
É a Mudança.
Deus É Mudança."
- Semente da Terra: os livros dos vivos.
De relato cotidiano em relato cotidiano vamos caminhando com uma garota jovem, pragmática e empática enfrentando a dura realidade de um mundo caótico na qual a violência impera. Nossa protagonista é muito consciente do mundo no qual vive, mesmo crescendo protegida, ela sempre teve clareza em relação a fragilidade da proteção oferecida pelo muro de seu bairro. Ela está decidida a sobreviver a qualquer coisa que aconteça e levar a palavra de sua religião à frente colaborando com a reestruturação da humanidade enquanto espécie destinada a criar raízes entre as estrelas.

Quando a comunidade nossa heroína, profetiza, escritora, se desmonta de uma forma dolorosa e ela caí no mundo vai enfrentar as estradas, testar os valores de sua fé pragmática, juntar pessoas em torno de si e caminhar enfrentando as dificuldades, sobrevivendo e elaborando, mesmo no caos, um caminho para algum novo lugar civilizatório promissor para si e para seu novo grupo.

Ao escrever a duologia "Semente da Terra" a Octavia olhou para o "seu agora" de 1992/1993, o que a humanidade estava fazendo, quais eram os seus comportamentos e os problemas que estavam sendo negligenciados. Considerou a forma como as drogas iam surgindo e seus efeitos devastadores, o trabalho precarizado, o encarceramento em massa, a indisposição com a construção de escolas e bibliotecas, os ataques ao meio ambiente e criou essa história acertando muito em suas previsões. Já existem pessoas de diversas classes sociais morando em bairros fechados e lidando com o ódio da comunidade em seu entorno investindo cada vez mais sem segurança armada. A última reforma das leis trabalhistas foi catastrófica, a Extrema Direita com seus ideais Fascistas avançam pelo mundo.

Terminei de ler "A Parábola do Semeador" entre deleitada com a poderosa escrita da Octavia e assustada com os caminhos da humanidade. O deus Mudança da "Semente da Terra" me fez recordar o Exu, orixá cultuado no Candomblé, considerado o senhor dos caminhos, das encruzilhadas, das comunicações, transformações. Tenho uma amiga que repete com constância, poesia, carinho, amor e convicção: "Tudo é Exu". Os relatos íntimos, honestos e esperançosos da Lauren me fizeram recordar a experiência de ler "O Diário de Anne Frank", me fez ter vontade de ler novamente esse clássico do século XX. 

A leitura foi tão envolvente que na sequência me peguei agarrada ao vol. 2 da Duologia Semente da Terra, o "A Parábola dos Talentos". Esse recesso escolar de 2024 foi marcado por essa febre que de caminhar com a Lauren, conviver com seu grupo de amigos e saber como todas as pessoas (homens, mulheres, jovens adultos e crianças) foram sobrevivendo as catástrofes de nosso tempo e construindo novas possibilidades para si e para os outros.


Por fim, apesar de "A Parábola do Semeador" estar na minha estante desde 2019, só o peguei para ler devido ao post da Marly Oliveira no blog "Saboreando a Vida". As impressões dela foram as responsáveis por me fazer levantar, ir na estante, pegar o livro e me debruçar sobre ele. Quero deixar aqui registrada minha gratidão. Obrigada Marly por ter compartilhado suas experiências e me provocado!


3 comentários:

  1. Este livro é mesmo muito bom e a escrita de Octavia Butler é envolvente, cativante. Na minha resenha eu não quis entrar em muitos detalhes, para não estragar totalmente a experiência de quem fosse ler o livro, rsrs.
    Porém, eu também fiquei impressionada com as coincidências entre os acontecimentos narrados e a realidade que hoje vivemos. O fato de a estória começar em 2024 é um 'detalhe' assombroso, porque muita gente meio que profetizou - especialmente em tempos recentes, mas não só - que a partir desse ano, e especialmente do ano que vem, muita coisa inusitada e negativa haverá de acontecer.
    Sobre os direitos trabalhistas, não sei se todos se deram conta, mas a agenda, digamos, global, de extinguir todos os direitos conquistados pelos trabalhadores, nos últimos 100 anos (na base do sangue, suor e lágrimas), está sendo executada. E a maior evidência disso é que há muitos jovens defendendo a extinção da CLT, porque a mesma foi demonizada por pessoas que têm poder.
    Eu só não caio em depressão por conta de tudo que tem acontecido, porque sempre fui uma pessoa de fé!

    Beijo

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  2. Boa noite, Jaci,

    Voltei para complementar o comentário, porque ontem tive um dia agitado, até mesmo enquanto comentava, rsrs. Obrigada pela menção, fiquei feliz em apressar a tua leitura, valeu a pena, não é verdade?

    Beijão

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