quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Todos os Contos de Clarice Lispector

Esse ano não sei se vivi ou se apenas li e comprei livros da Clarice Lispector. Não foi algo premeditado, apesar de "Todos os Contos" está no meu Kindle desde 2017, quando o comprei por R$ 03,47, era um e-book esquecido no meio de tantos outros. Muitoooo por acaso cliquei nele e comecei a ler em um desses fins de madrugada/início de manhã quando estava no ônibus indo para o trabalho. Levo uma hora de relógio para sair de casa e chegar ao trabalho, o exercício de ler Clarice fez essa hora parecer cinco minutos.

A escrita de Clarice Lispector é muito envolvente, a gente bota o pé no rasinho, dá dois passos para dentro e, "de repente, não mais que de repente" se vê nadando, mergulhando, indo fundo, vivendo uma experiência arrebatadora e ao mesmo tempo muito confortável. Botei o pé conto "O Triunfo", primeiro conto da parte da coletânea intitulada "Primeiras Histórias", e já não estava mais em um ônibus indo de Vitória de Santo Antão para Jaboatão às cinco da manhã e sim em uma casa onde "o relógio bate 9 horas" e Luísa está estendida sobre os os lençóis, "um braço cá, ou lá, crucificada pela lassidão" e me pareceu tão eu despertando em minha casa nas manhãs de meus dias de folga que daí largar a leitura era uma missão impossível.

Quem organiza "Todos os Contos" é o Benjamin Moser, que também é responsável pela introdução do livro, o texto  “Glamour e Gramática", ele junto, como o título já anuncia, todos os contos publicados por Clarice Lispector ao longo de sua vida, alguns até depois de sua partida, na ordem na qual foram escritos e publicados, assim temos aqui reunidos os textos:

  • "Primeiras Histórias",
  • "Laços de Família"
  • "A Legião Estrangeira"
  • "Felicidade Clandestina"
  • "Onde estivestes de noites"
  • "A Via Crucis do Corpo"
  • "Visão do Esplendor"
  • "Últimas Histórias"

São os textos da vida inteira de uma mulher do século XX que começou a escrever na infância e atravessou todas as fases da vida escrevendo sobre suas experiências pessoais, visão e interpretação de mundo, seus sonhos e sentimentos. Clarice nos apresenta o mundo feminino do século XX brasileiro dando profundidade ao que poderia ser considerado superficial, com linguagem tão simples que faz brilhar a complexidade dos sentimentos femininos no mundo. 


Foi uma experiência muito emocionante para uma mulher como eu que está fechando essa era balzaquiana da vida, a um ano e seis meses de sustentar pela primeira vez o título de quarentona, caminhar com Clarice da sua juventude a maturidade, conhecer as histórias sobre a infância recifense, sentir seu olhar sobre a adolescência, ler histórias de mulheres recém casadas, saber de sua própria boca sobre sua vida de mãe de crianças e depois de mãe de adultos. Sentir os momentos nos quais ela tinha muita companhia e os de muita solidão, perceber os caminhos de sua escrita, como ela amadurece seu projeto literário, consciente ou inconsciente, de abordar a vida íntima silenciosa e silenciada das mulheres.

Como o disse Benjamin Moser no prefácio do livro, Clarice era:
"Uma mulher que não foi interrompida: que não começou a escrever tarde, que não parou por causa do casamento ou dos filhos nem sucumbiu as drogas ou ao suicídio; uma mulher que, como tantos escritores homens, começou na adolescência e perseverou até o fim; uma mulher, em termos demográficos, era exatamente igual à maioria de suas leitoras."

Ler de ponta a ponta o conjunto de contos completo de uma autora assim é uma coisa sensacional. É um mergulho reflexivo, generoso, caloroso e afetuoso na experiência de ser mulher no mundo. É não se sentir tão só no mundo, é ter um grande guarda-chuva de experiências de vida no qual se abrigar quando os temporais inevitáveis chegam. Não por acaso fui ampliando minha coleção de livros físicos da autora, não por acaso me peguei depois de terminar o e-book indo reler a edição física. Em muitos dias essa mulher sensacional foi minha primeira companhia do dia e a também a última, acordei e dormi muitas vezes com ela.

Benjamin Moser diz que Clarice Lispector é uma autora que possui glamour no sentido antigo da palavra, aquele que se refere à capacidade de atrair, enfeitiçar. Mas, em relação a mim, não se tratou de um processo de enfeitiçamento, de sentir aquela febre que me torna incapaz de largar o livro quer ele me aterrorize ou me fascine. A minha experiência se relacionou muito mais a sensação de acolhimento. As experiências de ser mulher no mundo descritas por Clarice acolheram a minha experiência de ser mulher no mundo.

"A lendariamente bela Clarice Lispector, alta e loira, usando os extravagantes óculos escuros e as bijuterias de uma grande dama carioca de meados do século passado, adequava-se à definição moderna de glamour. Trabalhou como jornalista de moda e sabia muito bem encarnar o papel. Mas é no sentido mais antigo da palavra que Clarice Lispector é glamourosa: como uma feiticeira, literalmente encantadora, um nervoso fantasma que assombra todos os ramos das artes brasileiras."

Desde o primeiro parágrafo do conto mais antigo que o Benjamin Moser foi capaz de achar até o último eu me sentir em casa. Estar no universo Clariciano é como estar em meu próprio universo. Quanto mais textos dela mais quero ler, o colecionismo dos livros dela emergindo como uma febre que a leitura não foi.

Falei muito da Clarice Lispector esse ano, se houvesse mais ano, mais eu falaria. O exercício de lê-la no meu dia-a-dia foi muito importante para manter minha inteireza. Me juntou muito quando eu estive espalhada, me aprumou quando me sentir entortar. Ser mulher não é fácil, precisamos ouvir umas as outras, entender as múltiplas perspectivas de ser que existem dentro desse espectro, perceber o quanto nossa geração tem mais liberdades e possibilidades que outras, desfrutar do prazer de nos ouvir mutuamente e de falar, escrever, sonhar, pensar.

Já estou devaneando, então vou finalizar essa escrita dizendo com alguns pontos: meu livro favorito de todos, talvez por refletir meu atual momento de vida foi "A Legião Estrangeira", "Laços de Família" é um livro que explora muito como a família suga as forças das mulheres, "Felicidade Clandestina" é um livro LINDÍSSIMO, essa foi minha segunda leitura dele, pretendo fazer uma terceira pois é um livro alegre que me alegra; "Onde estivestes a noite" também é belíssimo e quero ler de novo; "A Via Crucis do Corpo" me fez sentir a solidão que acomete as mães de pessoas adultas, é um reverso de "Felicidade Clandestina" devia ser lido um depois do outro, inclusive pretendo fazer essa experiência.

Não gosto de oferecer conselhos, mas "Leiam Clarice Lispector, vale muito a pena!".

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