sexta-feira, 15 de novembro de 2024

"Coração das Trevas" de Joseph Conrad

Peguei "Coração das Trevas" de Joseph Conrad para ler com a mente preparada para uma leitura difícil. Esperava uma sopa de pedra, mas, para minha surpresa, a leitura foi muito fluida, fácil e descomplicada. Li praticamente de uma vez só, em um sopro. Difícil mesmo foi organizar as ideias para construir uma resenha com minhas impressões sobre o livro. Literalmente, há meses começo, apago e recomeço esse texto sem ter sucesso em chega a conclusão.

Em "Coração das Trevas" encontramos o relato de Charles Marlow, um homem que através de um emprego como capitão de um navio, viveu uma aventura navegando pelo Rio Congo localizado no Coração da África. Narrado em primeira pessoa por nosso capitão, anos depois de sua aventura, enquanto ele navega com alguns jovens através do Rio Tâmisa, o livro é verdadeiro tratado muito franco sobre COLONIZAÇÃO desde as páginas nas quais nosso narrador divaga sobre o processo de colonização do território britânico pelo Império Romano, sim, aquele que acabou no ano 476 da Era Comum, até as últimas quando ele explana os resultados pouco agradáveis desse processo para as famílias dos homens brancos envolvidos nele.
"A conquista da terra, que significa principalmente tomar daqueles que têm compleição difere ou narizes ligeiramente mais chatos do que os nosso, não é uma coisa bonita quando se olha bem para ela. O que redime é apenas a ideia." (pág. 21).
De devaneios sobre os primeiros romanos a navegar pelo Tamisa passando por suas memórias de como sonhava em criança em desvendar os mistérios os lugares "vazios" pelos europeus passando por como ele conseguiu através de nepotismo um emprego numa Companhia de Comércio responsável por explorar marfim e algo mais até sua aventura no Coração da África propriamente dito, Marlow vai contando a epopeia do europeu na África.
"- Ora, quando eu era pequeno tinha paixão por mapas. Ficava olhando horas para a América do Sul, para a África ou para a Austrália, e me perdia nas glórias da exploração. Naquela época, havia muitos espaços vazios na Terra..." (pág. 23-24)
Marlow me pareceu um narrador sincero na forma como ele contou a perspectiva dos homens brancos europeus sobre a colonização, o que eles viam e sentiam dentro da África, seus processos emocionais dentro de uma floresta tropical, navegando um até então desconhecido para aqueles homens, dialogando através da violência com uma cultura diferente da deles. Ler Joseph Conrad foi uma experiência parecida com a de ler H. P. Lovecraft: a expectativa era encontrar algo terrivelmente assombroso, a realidade foi encontrar algo terrivelmente preconceituoso.
Conrad faz do Coração da África um lugar de trevas onde os seres humanos revelam seus lados mais assombrosos dentro do contexto de violência do processo colonizador. Tem um tom de crítica aos terrores desse processo, mas ao mesmo tempo durante todo o texto quem é posto no lugar de vítima não são os povos africanos, a fauna e a flora africana e sim os colonizadores, esses homens bravios que se dispõe a adentrar os "lugares escuros" do mundo, esses homens que se submetem ás ambições das companhias de comércio, navegam as águas de rios sombrios, encontram com selvagens com grandes ideais e no final são apenas explorados.
"O curso do rio se abria diante de nós e depois se fechava atrás, como se a floresta tivesse avançado com tranquilidade sobre a água para bloquear o caminho de nossa volta. Penetramos mais e mais fundo no coração das trevas. Era muito silencioso lá. À noite, às vezes, o soar de tambores atrás da cortina de árvores percorria o rio e permanecia tenuemente suspenso, como se pairando no ar acima de nossas cabeças, até a primeira luz do dia. Se queria dizer guerra, paz ou prece não sabíamos dizer." (pág. 112)
Eu, mulher favelada, nascida e criada no coração de um dos primeiros mundos colonizados pelos europeus, tenho o total de zero empatia e admiração por esses homens de valentia duvidosa que se aventuraram no processo colonizador por uma mistura de curiosidade e ambição. Se eles sofreram as agruras do confronto com o desconhecido também impuseram muito sofrimento a milhares de pessoas que viviam suas vidas de maneira mais ou menos indiferentes às ambições dos europeus.

Conrad, Marlow, os Ingleses do século XIX, os Portugueses do XVI, os Romanos dos primeiros séculos da Era Cristã, os Americanos semeando dor no Oriente Médio nesse exato momento, para mim são uns babacas, preconceituosos, horríveis. "Horror! Horror!", dizemos nós, as filhas desse processo de violência, contemplando o coração cheio de trevas do Capitalismo que tudo consome em busca de lucro.

Além de não ser fácil, ainda é difícil ver o quanto os europeus se achavam grandes sofredores enquanto saqueavam a África. O fardo do homem branco era se embrenhar na floresta confrontando mata fechada, calor, doenças tropicais e isolamento dos avanços da ciência em prol do lucro de uma Companhia de Comércio e da tarefa de levar o "progresso" ao mundo incivilizado. Não sei porque não estou em prantos nesse momento. Conrad acreditava mesmo que o processo de exploração devia ser feito levando para aqueles "selvagens" o primor da cultura branca, ele inclusive julga mal aqueles que declaradamente só estavam atrás do lucro.
"Aquele bando dedicado se chamava Expedição Exploratória do Eldorado, e acredito que tinham um juramento de segredo. Sua fala, porém, era a fala de sórdidos piratas: era descuidada sem ousadia, ávida sem audácia e cruel sem coragem; não havia nem um átomo de preocupação ou intenção séria em todo aquele grupo,  e eles pareciam não ter consciência de que essas coisas são desejáveis para o funcionamento do mundo. Arrancar os tesouros do ventre da Terra era o desejo deles, sem nenhum outro propósito moral em si do que haveria em ladrões invadindo um cofre." (PÁG. 97)
Fiquei muitíssimo chocado com a incapacidade dos europeus do século XIX perceberem a beleza da floresta, do rio, da luz do sol, do calor, dos sons produzidos pelos tambores ancestrais dos povos da África. Conrad descreve paisagens absolutamente exuberantes, grandiosas, extraordinárias com um filtro do horror, do negativo, da ausência de paz. "Coração das Trevas" é um monumento da ignorância europeia em relação a tudo aquilo que não é europeu.
"Subir aquele rio era como viajar de volta aos primórdios do começo do mundo, quando a vegetação cobria desordenadamente a Terra e as grandes árvores eram rainhas. Um rio vazio, um grande silêncio, uma floresta impenetrável. O ar estava quente, denso, pesado, lento. Não havia alegria no brilho do sol. O rio corria extenso, deserto, na penumbra das distâncias sombreadas. Em bancos de areia prateados, hipopótamos e crocodilos tomavam sol lado a lado. As vastas águas corriam em meio a uma multidão de ilhas arborizadas; naquele rio você se perdia como num deserto, topava o dia inteiro com baixios na tentativa de encontrar o canal, até achar que estava enfeitiçado e separado para sempre de tudo o que conheceu em algum lugar, longe, em outra existência talvez. [...] E essa calmaria de vida em nada parecia paz. Era a calma de uma força implacável meditando sobre uma intenção inescrutável. Olhava para você com um aspecto vingativo." (pág. 108-109)

Como alguém descreve como vazio um rio cheio de vida animal? Como alguém está em um dos lugares mais ensolarados da terra e não percebe a alegria no brilho do sol? como não sentir paz? A gente leva quem é para onde quer que vá e os europeus, os americanos, os portugueses e até mesmo os romanos levaram muitas trevas pelos lugares por onde andaram. Como o ser humano consegue ser atroz assim? "Horror! Horror!".

Para não mergulhar ainda mais no meu absurdamento, preciso concluir esse texto exaltando a edição da Antofágica. As ilustrações belíssimas, aos vários textos de apoio de prefácio e posfácio, a capa dura e toda a qualidade de impressão me fazem sempre considerar as edições dessa editora bem barrocas. É uma delícia ler textos clássicos nessa roupagem cheia de personalidade, torna a experiência imersiva e prazerosa. Eu devia ter recheado esse texto com as imagens do livro, mas preferi priorizar as citações que embasaram minhas opiniões sobre o livro.

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