A experiência de ler Todos os Contos de Clarice Lispector foi envolvente e apaixonante, me trouxe uma forma muito particular e única de conhecer essa autora tão marcante para a Literatura Brasileira. De todos os livros de contos dela, "A Legião Estrangeira" se tornou o preferido, então de repente, quando menos esperei, me veio a vontade de ler ele separadamente e cá estou eu tentando escrever um pouco sobre meus sentimentos em relação a essa obra.
Talvez por ser professora de História, quando via o título dessa obra lembrava da Legião Estrangeira do Exército Francês que é uma infantaria formada por soldados de diversas nacionalidades. Lembro também de ter visto o filme do "Legionário" do Jean-Claude Van Damme e ter ficado com a impressão desse destacamento do exército ser formado por pessoas mais ou menos desesperadas em busca de recursos financeiros, por derradeiro um exército mercenário.
O livro da Clarice não aborda de nenhuma forma essa unidade do Exército Francês, mas cada conto carrega em si certa dose de um estranhamento, uma sensação de "não pertencimento" que imaginamos perseguir uma pessoa que resolve integrar um exército de um país que não é o seu, em uma guerra que não é propriamente, por uma questão de necessidade material ou emocional. Fiquei com a impressão de ter encontrado em algum personagem de cada conto uma sensação de estranhamento em relação a vida que se leva, uma sensação de dúvida em relação às motivações que os levaram até a situação na qual se encontram, uma sensação não pertencimento ao contexto no qual estão inseridos.
Tem um certo "o que é isso que acontece comigo aqui e agora?" em muitos espaços desse livro, mas é bom deixar claro o quanto a Clarice é uma autora luminosa, seus contos não são tristes, todos tem um foco de luz. São textos envolventes, em alguns momentos me deixaram confusa, em outros me tomam por completo, são um tipo de comida saborosa que alimenta o coração e causa empatia. Eu também me sinto muitas vezes estrangeira em minha própria pele ou mesmo um pedaço de uma Legião Estrangeira lutando guerras que não são minhas.
Nesse livro se encontram, talvez, o meus contos favoritos de Clarice: "Os Desastres de Sofia"; "O Ovo e a Galinha" e aquele que dá nome ao livro "A Legião Estrangeira".
Em "Os Desastres de Sofia" encontramos um episódio da vida escolar de uma menina muito peralta, cheia de imaginação e amor frenético por seu professor. Sofia me faz lembrar meus estudantes cheios de energia, confusos, agoniados, com um folego de vida incrível e um senso de desafio maior ainda. É uma história muito vibrante. Encontrei muita gente como Sofia ao longo dos últimos 10 anos, não consigo deixar de sentir ternura por essa personagem, gosto de pensar que esse conto tem notas e sabores autobiográficos, consigo vê a Clarice na Sofia.
Já "O Ovo e a Galinha" é meu conto FAVORITO da Clarice em CAPS LOCK. Já li o texto diversas vezes e ainda não se desfez o encanto no qual a primeira leitura me lançou. A cada nova leitora o encantamento se renova e vejo novas nuances nessa pessoa que acorda pela manhã e enquanto quebra um ovo para fazer a refeição do seu filho reflete sobre tantas coisas. Para mim é um texto sobre ser mulher e mãe no mundo, sobre como é ter um ovo/filho sobre sua tutela, sobre as implicações da maternidade dentro do ser mulher. Galinha, ovo, pintinho... tudo isso converge para uma conversa sobre a maternidade e o amor dentro de uma mulher em sociedade. A MATERNIDADE torna a MULHER uma estrangeira nessa terra durante o tempo quase infinito da infância e adolescência de um ser humano? Não sou mãe, não tenho resposta para essa pergunta.
Em "A Legião Estrangeira" encontramos a história do encontro de uma mulher com uma criança, a Ofélia. Li esse conto umas 4 a 5 vezes e continuo apaixonada por essa criança insolente com resposta para tudo e por essa mulher que abre as portas de seu apartamento para sua vizinha. A convivência entre as duas é engraçada, instigante, lúdica, incomoda e um pouco trágica em seu desfecho, mas que conto sensacional!
"Sim, repeti embriagada, porque o perigo maior não existe: quando se vai, se vai junto, você mesma sempre estará; isso, isso você levará consigo para o que for ser.A agonia de seu nascimento. Até então eu nunca vira a coragem. A coragem de ser o outro que se é, a de nascer do próprio parto, e de largar no chão o corpo antigo. E sem lhe terem respondido se valia a pena. 'Eu', tentava dizer seu corpo molhado pelas águas. Sua núpcias consigo mesma." (Clarice Lispector em "A Legião Estrangeira", pag. 113).
Os outros contos do livro também são sensacionais. "A repartição dos Pães" é lindo, "A quinta história" é instigante com boatos que pode ser uma introdução para "A Paixão Segundo G.H.", livro do qual tenho medo desde a adolescência, "Viagem a Petrópolis" é triste, doce, sincero em seu olhar sobre a velhice e algo mais que não sei como explicar.
Ler Clarice em 2024 se tornou um estranho vício. Tudo bem que ler e reler livros é costume das pessoas leitoras, mas foi a primeira vez que em um mesmo ano li duas vezes o mesmo livro e amei ambas as leituras.
Ler Clarice é como um repiro em meio ao caos.
ResponderExcluirAdorei a foto com Lion. Bjjjs
bonita capa do livro. esse dela eu não li. o gato!!! ah, eu acompanhei de perto o ovo da galinha. conheci uma estudiosa que usou o conto em sua tesa e publicou depois pela anablume. beijos, pedrita
ResponderExcluirTenho este livro e ainda não o li (mas li vários outros da autora). Refletindo agora, me dei conta de que talvez não o tenha lido porque uma amiga - há muitos anos, quando éramos ainda adolescentes - me disse que os contos são densos demais, tristes demais e podem acionar gatilhos.
ResponderExcluirO curioso é que eu nunca temi nenhuma dessas coisas e não tenho medo de 'gatilhos', rsrs.
Beijo