sábado, 14 de setembro de 2024

A Bela Adormecida da minha vida...


Minha professora de dança do ventre também trabalha com Teatro Infantil e foi assim que terminei indo assistir uma apresentação da peça "A Bela Adormecida" sem nunca na vida ter nem mesmo visto o filme da Disney e amei.

Nunca me dispus a vê o filme da Bela Adormecida não por não gostar de contos de fadas, eu amo! Coleciono livros de contos de fadas com paixão, tenho "Os Contos da Mamãe Gansa", o encantador "Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos" dos Irmãos Grimm, volumes e mais volumes dos livros do poético e doce Hans Christian Andersen, fora outras tantas coletâneas de contos de fadas com diferentes estilos de ilustrações, capas duras, edições luxuosas que me levam novamente a infância e aguçam meu colecionismo implacável.

Também gosto bastante dos filmes mais antigos da Disney. Não posso ter um dia de folga e lá vou rever "Cinderela", "A Bela e a Fera", "Alice no País das Maravilhas". Gosto dos filmes atuais da Disney, mas a Disney do Velho Testamento tem um sabor diferenciado, acho quase iconoclasta, sendo feminista como sou, amar tanto esses filmes cheio de Príncipes Encantados com atitudes nada confiáveis, Princesas Encantadas absurdamente solitárias, rivalidades femininas e finais felizes inverossímeis.

Costumo excluir "A Bela Adormecida" de minhas sessões de "Cinema em Casa" devido ao fato dela me lembrar de Jaqueline, uma amiga da escola. Jaqueline tinha a língua presa e falava de um jeito parecido com Clarice Lispector, tinha uma queimadura enorme nas costas da mão, era branquinha com um cabelo liso, longo e louro.

Nós cursamos juntas a sétima série, não éramos do mesmo grupinho, mas permanecemos amigas mesmo quando fomos cada uma para uma sala diferente no seguinte. Costumávamos conversar pelos corredores da escola ou negligentemente encostadas na porta da sala durante as aulas vagas. Lembro de quando ela me contou sobre a queimadura da mão dela, lembro do coleguismo e de como me pareceu absurdo ver a vida de Jaqueline ir embora tão cedo por conta de uma "bala perdida". No velório, em um caixão branco, envolta em flores, com o rosto emoldurado por sua cabeleira loira, ela parecia a Bela Adormecida, seus pais desesperados e descrentes pareciam Rainha e Rei esperando um milagre, uma fada, um feitiço que desfizesse tudo aquilo, uma promessa absurda qualquer de reencontro futuro.

Toda vida fui apaixonada por contos de fadas. Vejam só as imagens que uma mente educada a luz dessas histórias cria em um momento de dor. Como pode a vida ser tão dura? Como balas "perdidas" encontrarem com tanta presteza os corpos periféricos? Elas não foram perdidas? Perdida não diz respeito a algo que desapareceu ou sumiu? A bala que tirou Jaqueline de seus pais, amigas e amigos foi algo que encontrou o corpo dela enquanto ela estava no meio de uma ligação em um orelhão lá no finalzinho do Córrego da Imbaúba, Bairro de Nova Descoberta, Zona Norte do Recife.

Agora já faz mais de 20 anos desde aquela tarde na qual deixamos de entrar na Escola Clotilde de Oliveira e fomos para o Cemitério de Casa Amarela prestar nossa última homenagem a nossa amiga. Dou uma pesquisada e vejo o quanto ainda se mata e ainda se morre de "balas perdidas" em Recife. A matéria do G1 "Balas Perdidas no Grande Recife deixam 40 vítimas e causam oito mortes no primeiro semestre do 2024" é de me fazer chorar. História é feita de continuidades e rupturas, essas continuidades me assombram. Até quando? Não é natural sepultar crianças e adolescentes.


Enfim, apesar de todos os meus sentimentos e memórias dolorosas, resolvi ir vê a peça na qual minha professora de dança do ventre interpretava a mãe da Princesa Aurora. Foi uma experiência muito divertida, muito lúdica. As crianças se envolveram com os personagens de uma forma encantadora. O Teatro é Mágico! A realidade é suspensa durante aquela horinha e abre-se as cortinas para um mundo mágico com fadas, magia, aventura e final feliz. O bem vence o mal, a Princesa volta a vida com um beijo do amor verdadeiro, não há lágrimas. É lindo!

Fiquei encantada! Na minha infância meus pais não me levavam ao teatro, pois eu congregava em uma Igreja Evangélica muito tradicional e dentro das regras dessa instituição teatro era pecado, assim como cinema e qualquer música não relacionada a assuntos da fé. Materialmente falando, tive uma infância austera, minha válvula de escape era a literatura, os contos de fadas e até mesmo as histórias da Bíblia com seu caráter maravilhoso, milagres, salvação e promessas de bem-aventuranças para os simples de coração, os justos, os pacificadores.

Descobrir o encantamento do Teatro Infantil prestes a completar 40 anos através de uma história que me lembra tanto uma pessoa querida foi uma experiência agridoce. Fui puxada junto com as crianças para o Reino Encantado, dei risada com as Fadas Madrinhas, me assustei com a Malévola, torci pelo Príncipe Encantado, chorei com o Beijo do Amor Verdadeiro trazendo a Aurora de volta à vida.

Quando a peça terminou o elenco inteiro se reuniu no palco e todas e todos que quiseram puderam tirar foto com eles para guardar o momento. A fila estava significativa, mas fiz questão de me juntar às crianças para ter minha própria recordação.


Não sei como terminar esse texto, mas gostaria muito que nós, mesmo sem acesso a magia das fadas, conseguíssemos encontrar uma forma de construir uma sociedade na qual nossas princesas e príncipes não fossem adormecidas e adormecidos para sempre por balas que encontram seus corpos. Os contos de Fadas são Utopias nas quais o Bem vence o Mal e as pessoas encontram seu Feliz Para Sempre, não é ruim acreditar na possibilidade de um Mundo Melhor, de Final Feliz e se propor a trabalhar para tornar esse sonho utópico possível. Não quero me conformar, normalizar o absurdo, mesmo quando ele se torna cotidiano, quero continuar apaixonada por contos de fadas, ir a mais algumas peças infantis, relembrar minhas amigas e amigos e lutar pela construção de histórias menos trágicas. Me livrar do agre e ficar com o doce.

2 comentários:

  1. Lendo teu lindo texto, chega a arrepiar... Infelizmente a vida não é como nos contos de fadas... Triste perder a colega para bala perdida e são tantas, TANTAS vidas que assim se perdem... Incrível acreditar e refaço a tua pergunta:ATÉ QUANDO?

    Lindo fds!

    beijos, chica

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  2. O teatro é muito importante. É diversão, é entretenimento, mas também pode informar e fazer refletir. Talvez por isso haja instituições que proibem esse tipo de distração. Quanto às balas 'perdidas', que sempre encontram corpos de pobres ou desassistidos, já passa da hora de lutarmos contra isso.

    Beijo e bom fim de semana

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