terça-feira, 10 de setembro de 2024

"Um brasileiro em Berlim" de João Ubaldo Ribeiro

Minha amiga Ana Seerig em 2023 defendeu uma dissertação de mestrado intitulada "O olhar de João Ubaldo Ribeiro sobre a unificação alemã: uma leitura histórica da coletânea "Um brasileiro em Berlim". Tive a honra de acompanhar todo o processo de feitura desse texto lendo os capítulos a medida em que eram completados, acompanhando apresentações gravadas para seminários ocorridos on-line devido a Pandemia do Covid-19, estando presente na plateia da Banca de Qualificação e na Banca da Defesa. Depois de acompanhar por pouco mais de dois anos a feitura de um trabalho sobre a obra do Ubaldo, me sentia conhecendo o autor, mas faltava ler o livro dele, então cruzei, quase por acaso, com o e-book quase perdido no kindle e finalmente tive o prazer de ler.

O livro "Um Brasileiro em Berlim" trata-se de um conjunto de crônicas escritas por João Ubaldo Riberio durante a sua estadia de quinze meses em Berlim, entre abril de 1990 e julho de 1991, a convite do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD). Ele escrevia mensalmente em português, o texto era traduzido para o alemão e publicado no jornal e assim temos a oportunidade de ver, através dos olhos de um brasileiro, como foi viver na capital da Alemanha nos dias depois da Queda do Muro de Berlim, do início dessa vida pós-Guerra Fria.

O João Ubaldo foi um expectador muito atento dos seres humanos vivendo suas vidas. Em suas crônicas ele fala sobre as diferenças culturais entre Alemanha e Brasil, a xenofobia em relação aos estrangeiros, o estranhamentos dos berlinenses do ocidente em relação aos do oriente, a vida dos seus filhos no ambiente de um país estrangeiro, da vida doméstica, do Outono, tem até um texto no qual ele fala sobre como sua família amava com obsessão voraz os livros.

Esse é aquele tipo de livro para se ler em uma sentada só entre alegria e tristeza, refletindo e ampliando nossa visão sobre o passado. O gênero textual crônica tem a virtude de levar os autores a escreverem sobre seu cotidiano, sobre fatos do seu dia-a-dia, para alguém como eu que vive de Ensinar História, são um prato cheio, uma porta para adentrar o passado com os olhos de quem viveu o passado.

Sempre que via matérias na televisão sobre a Queda do Muro de Berlim, tinha a impressão de estar diante de um fato que anunciou um grande final feliz para a História do Ocidente, mas lendo crônicas como "O Tartamudo do Kurfürstendamm" e "A Velha Cidade Guerreira" sinto que a vida não é mesmo um conto de fadas. Berlim Ocidental, sucesso do mundo capitalista, se apresentou ao Ubaldo como uma cidade um tanto xenofóbica, recebendo mal pessoa vindas dos países do Leste Europeu, anteriormente pertencentes a Cortina de Ferro da URSS. Migrar é um Direito Humano, diz a ONU, mas o Mundo Capitalista Ocidental tem sido muito pouco acolhedor com imigrantes.

"1. Toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência no interior de um Estado. 2. Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país." (Artigo 13 da Declaração Universal dos Direitos Humanos)

Em alguns momentos, enquanto lia as palavras do Ubaldo, me senti desamparada, pensando junto com ele se realmente as violências do passado existiram mesmo e se de fato aconteceram, porque não aprendemos nada com elas.

"O que existiu realmente existiu? Algo importa além do presente? Há realmente uma História, somos de fato herdeiros de alguma coisa, ou somos eternos construtores daquilo que a memória finge preservar, mas apenas refaz, conforme suas variadas conveniências a cada instante que vivemos? (João Ubaldo Ribeiro em "A Velha Cidade Guerreira")

Na crônica "Educação Financeira" na qual o autor conta sobre os métodos usados por ele e sua esposa para fazer com que seus filhos passassem a entender que na Alemanha as moedinhas tinham valor econômico, nos contam de uma forma humorada como a inflação no Brasil durante a década de 80 e início da de 90 do Século XX era atroz.

"No Brasil, não há dinheiro. Há papeis coloridos e moedinhas talvez feitas de restos de panelas velhas. E isso vem de longe. Nasci quando o mil-réis foi substituído pelo cruzeiro. Cada mil-réis valia um cruzeiro. Mais tarde, inspirado pelo nouveau franc, o governo criou o cruzeiro novo, que valia mil vezes mais do que o velho. Anos depois, veio o cruzado, que valia mil vezes mais do que o cruzeiro novo e durou alguns meses. Quando se constatou que, para comprar um maço de cigarros com cruzados, o brasileiro tinha de carregar uma mala de dinheiro, criou-se o cruzado novo. Esse tampouco resistiu e, agora, numa operação em que as economias de todos foram confiscadas, voltamos ao cruzeiro." (João Ubaldo Ribeiro em "Educação Financeira")

Conheço pessoas com visão nostálgica sobre o "Antigamente do Brasil", mas fico bastante assustada quando vejo textos contando de uma realidade onde a inflação crescia 2% por dia e o dinheiro não valia absolutamente nada e a moeda mudava de nome como uma modelo muda de roupa ao longo de um desfile de moda. A Ditadura Militar quando chegou ao fim deixou o Brasil arrasado, como as pessoas têm saudades de um país desses?

Meu texto favorito da coletânea foi o "Memória de Livros" no qual o João falou sobre como sua família se relacionava com a literatura. Como pessoa apaixonada por livros, do tipo que prefere comprar uma estante nova a uma televisão, foi uma delícia ler sobre uma família tão apaixonada por esses papeis pintados com tinta tão especiais, tão únicos, tão capazes de nos transportar para todo tipo de lugar e experiência.

"Nada, porém, era como os livros. Toda a família sempre foi obcecada por livros e ás vezes ainda arma brigas ferozes por causa de livros, entre acusações mútuas de furto ou apropriação indébita. Meu avô furtava livros de meu pai, meu pai furtava livros de meu avô, eu furtava livros de meu pai e minha irmã até hoje furta livros de todos nós. A maior casa onde morávamos, mais ou menos a partir da época em que aprendi a ler, tinha uma sala reservada para a biblioteca e gabinete de meu pai, mas os livros não cabiam nela - na verdade, mal cabiam na casa. E, embora os interesses básicos dele fossem Direito e História, os livros eram sobre todos os assuntos e todos os tipos. Até mesmo ciências ocultas..." (João Ubaldo Ribeiro em "Memórias de Livros")

Moro em uma casa com centenas de livros, amo com devoção e loucura essa vida de leitora, fiquei encantada com essa família de bibliófilos contumazes. Estou apaixonada por esse autor tão competente, humorado, sagaz e observador da vida cotidiana. "Um brasileiro em Berlim" é aquele livro gostoso, fácil de ler, reflexivo, informativo, muito bom. Obrigada a Ana Seerig por invariavelmente trazer leituras excelentes para minha vida.

2 comentários:

  1. ah, que bom me lembrar desse livro. tinha até esquecido. ah, tb tenho loucura por livros. ótimo tema para tese e que delícia que vc pode acompanhar. beijos, pedrita

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  2. O João Ubaldo é realmente um ótimo escritor. Dele eu já li uns dois livros de crônicas, O sorriso do lagarto e um livro sobre política (que é quase didático). Mas tenho outros que quero ler, Viva o povo brasileiro, por exemplo.
    Por coincidência, ontem mesmo, estávamos conversando sobre a inflação no Brasil nas últimas décadas. Já foi um horror, e é até difícil acreditar que passamos por tudo aquilo.

    Beijo

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