"Octavia E. Butler é uma autora SENSACIONAL!": essa é a primeira coisa que a gente constata quando termina a primeira página de qualquer livro dela. Mestra da narrativa, envolvente, conscienciosa, fluída, sagaz, forjadora de histórias nas quais várias camadas de sentido dialogam, saltam aos olhos, entrelaçam-se e nos emocionam em um texto leve e dinâmico. "Kindred: laços de sangue" foi minha segunda experiência com a Octavia e sinto-me absurdada com a capacidade dela de escrever histórias pesadas em uma escrita leve e de fácil leitura. Fantástica! Uma autora absolutamente dona de sua narrativa, lúcida, audaz, visionária.
Em "Kindred: Laços de Sangue", Octavia nos apresentou a história de como Dana, uma escritora negra de sucesso regular, de repente não mais que de repente se vê sendo puxada de seu lugar no presente para um lugar no passado. Vivendo no século XX, Dana é uma mulher livre, trabalhadora, bem sucedida, casada com um homem branco e feliz, puxada sem explicação para o século XIX para o Sul escravista dos Estados Unidos ela se depara com uma realidade de opressão nua e crua na qual a sua vida está constantemente em perigo.
O que acontece com a Dana é muito súbito e visceral, em um momento ela está em sua casa organizando os livros com seu marido, no outro está vendo um menino se afogar no rio, em um impulso ela corre, entra no rio, salva o menino e se surpreende sendo maltratada pela mãe dele e ameaçada com uma arma pelo pai. Na iminência do perigo de um tiro na cara, ela volta para casa onde reencontra seu marido.
As viagens no tempo de Dana são tão súbitas que ela não tem controle nenhum sobre elas, tão rápidas e perigosas que sua necessidade maior, antes de entender a física da viagem no tempo, é entender a lógica sociocultural do passado no qual ela se vê presa. Sendo puxada para o Sul escravista dos Estados Unidos Da América ela se vê em uma realidade no qual as estruturas socioculturais estavam todas voltadas para a exploração da força de trabalho negra, desprovida de direitos, contatos e liberdade ela acaba descobrindo quão terrível era a vida de nossos ancestrais afrodescendentes e quão fortes aquelas mulheres e homens tinham que ser para sobreviver e resistir sem perder a ternura.
"Kindred" foi escrito pela Octavia dentro de um contexto no qual a sociedade americana tentava negar o horror da escravidão ou atenuar seus danos. Nesse livro, na qualidade de mulher negra, ela toma para si o dever de narrar o que foi o passado escravista americano e o faz com maestria. É doloroso, atroz, uma surra de realidade. A gente sente com a Dana o peso da estrutura daquela sociedade, o quanto ela machucava e dilacerava a alma das pessoas e sua força de lutar por liberdade, o quanto é difícil viver quando a ameaça do chicote está a todo tempo pensando sobre as costas das pessoas.
Dana tem uma experiência completa, social, cultural e psicológica com construção de traumas e afetos enviesados direcionados às pessoas brancas com as quais convive e seguram o chicote que muitas vezes fere concretamente sua carne. Para quem não conhece a História da Escravidão, esse livro pode ser um choque e uma surra de realidade absolutamente necessária para compreender como o racismo foi forjado ao longo do tempo na América. Para quem já conhece é uma lavagem de alma ter a oportunidade de ter capítulos da História Negra nesse continente sendo tão bem contada.
Esse livro é uma aula de como falar de História. O tempo todo acontece o diálogo do presente com o passado. A Octavia narra as experiências da Dana no presente, fala sobre sua família, trabalho, casamento e sobre as experiências no passado e assim vai estabelecendo o diálogo do presente com o passado dentro de uma narrativa de ficção científica. Eu já falei que esse livro é GENIAL? Eu queria realmente ter uma narrativa da história simples, envolvente e cheia de camadas como a da Octavia! Não tenho, muitas vezes minha aula é chata, não fisga a atenção dos meus estudantes e eu fico triste, sem saber o que fazer.
Ah, é preciso dizer também que este é um livro sobre a realidade da escravidão e da luta pela liberdade nos Estados Unidos da América. A realidade do Brasil guarda semelhanças, mas em si foi diferente. Os norte americanos proibiram o tráfico em 1808, bem antes do Brasil, o preço da pessoa escravizada era maior e o acesso mais difícil e isso fez com que a melhor estratégia para explorar o máximo possível a força de trabalho das pessoas escravizadas fosse não exaurir elas no trabalho e estimular a formação e manutenção de famílias escravizadas para manter um contingente de pessoas sendo exploradas.
No Brasil, o acesso a escravizados era mais fácil. O tráfico era legalizado até 1850, os navios negreiros chegavam com maior facilidade, então a estratégia para tirar o máximo proveito da força de trabalho das pessoas escravizadas era fazer elas trabalharem até a morte. A escravidão no Brasil foi mais predatória. Não por acaso em 2002 a Elza Soares cantou "A carne mais barata do mercado é a carne negra" no álbum "Do Cóccix Até o Pescoço". Inclusive, eu pensava que essa música era do fim do século XX, mas vejam bem, o século era o XXI e uma mulher negra brasileira cantou isso, imagine no século XIX?
Apesar de não se tratar da realidade do Brasil, conhecer a história da escravidão e liberdade na América é obrigação de todo mundo que vive nesse continente onde quem não tem sangue negro na veia, tem nas mãos. Onde quem não sofre com o racismo estrutural é privilegiado por ele. A América é um lugar no qual pessoas brancas, ou claras como eu, acabam tendo maior acesso a direitos, nossa sociedade atribui ou tira características humanas das pessoas usando como critério a cor de sua pele. Isso é horrível, precisamos lutar contra e conhecer a História é super necessário para se posicionar bem nessa luta.
Por fim, "Kindred: laços de sangue" da Octavia Butler faz parte da minha lista de "40 Livros Antes dos 40 Anos ". Foi aquele livro que me trouxe o prazer da leitura e também conhecimento. É lúdico, mesmo quando é didático! Quem me dera aprender a arte da Octavia e ser uma professora de História que faz meus estudantes felizes enquanto os ensina sobre as lutas, vitórias e derrotas do passado.
não conhecia, fiquei curiosa. anotado. beijos, pedrita
ResponderExcluirOlha que coincidência, eu tinha decidido retomar as minhas leituras de forma mais metódica, este ano. E entre os autores "a ler", incluí justamente Octavia E Butler. O livro resenhado parece muito bom.
ResponderExcluirBeijo
Li esse livro duas vezes. E nas duas vezes foi uma experiência brutal. Lembro de ter participado de um podcast a respeito dele e comentar que Dana é uma escrava do tempo, pois como você disse acima, ela não tem controle algum sobre suas viagens. Achei uma alfinetava certeira no fato de que todos os negros nas Américas também sejam escravos do tempo no sentido de derivarem de populações escravizadas que tiveram todos os seus direitos negados, mesmo depois da abolição.
ResponderExcluirGosto tanto de te ler falando de livros. Você consegue nos envolver e mesmo que eu não vá ler a obra, sabe, é uma maneira de saber o que há na literatura através do seu olhar e das suas leituras. Muito obrigada!
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