sábado, 1 de novembro de 2025

"Todas as Crônicas" de Clarice Lispector


"Todas as Crônicas" de Clarice Lispector foi, sem sombra de dúvida, a minha leitura mais importante de 2025. Comecei a leitura em 25 de Janeiro e segui com Clarice ao meu lado navegando pelos desafios grandes e pequenos que tem feito parte da minha vida ao longo desse ano imenso. A pneumonia do meu pai, os dias de internamento, a morte, o luto, a decisão de comprar um apartamento em um lugar mais próximo do trabalho, a troca de uma vida ancorada na parte central de uma cidade do interior para uma vida em um condomínio dentro da Região Metropolitana do Recife. Toda loucura e sanidade desse ano tão intenso, vivi ao enquanto lia as crônicas de Clarice Lispector nas manhãs maravilhosamente solitárias de meus dias de folga. Uma experiência incrível!

Saindo do terreno dos meus devaneios e indo a parte pratica da resenha, a edição de "Todas as Crônicas" publicada pela Rocco 2018 é organizada por Pedro Karp Vasquez, possui um prefácio carinho e lindo da queridíssima Marina Colasanti e um posfácio delicioso do Paulo Gurgel Valente. Aqui encontramos reunidos os textos de Clarice publicados entre os anos de 1967 e 1973 sempre aos sábados no "Jornal do Brasil"; publicados em dezembro de 1949 e fevereiro de 1947 no "O Jornal", no ano de 1962 na "Revista Senhor", entre maior de 1968 e agosto de 1969 na "Revista Joia", em Maio de 1977 no "A última hora" e no livro "Para não esquecer". São centenas de textos dos mais variados tamanhos ocupando mais de 600 páginas, parafraseando Paulo Gurgel Valente: "não conheço nada igual".


Trata-se de um compilado de textos nos quais uma mulher do inicio do século XX e através do processo de escrita digeria a vida com franqueza e honestidade. Em suas crônicas Clarice nos leva para dentro de sua casa, muito relutantemente ela compartilha de sua vida cotidiana, de suas histórias de infância, de seus encontros com amigos, das suas experiências com empregadas domésticas, seu amor pelo Brasil, sua aflição quando morou na Suíça, seus momentos de revolta, sua empatia com o movimento estudantil, sua relação com os taxistas, sua imensa capacidade de empatia com o sofrimento alheio e o grande constrangimento que está diante de uma pessoa que precisa e pede ajuda lhe causava.
"Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles precisam. Mentir dá remorso. E não mentir é um dom que o mundo não merece." (pág. 29)
Nesse compilado de crônicas, especialmente na parte do livro que se refere as publicações no "Jornal do Brasil" encontrei o que chamo de "uma Clarice cotidiana" e ao fazer a leitura desse calhamaço, sem pressa, pouco a pouco, nas manhãs de folga, a sensação foi de está em constante dialogo com uma mulher que me contou sobre sua vida, seus medos, suas dores, seus amores e esperanças. Me senti intima de Clarice, como se ela fosse uma amiga com a qual sento, converso e tomo um café nas minhas manhãs de folga.
"Eu disse a uma amiga:
- A vida sempre superexigiu de mim.
Ela disse:
- Mas lembre-se de que você também superexigiu da vida,
Sim." (pág. 32)
As vezes encontramos uma pessoa analisando o mundo de forma pragmática e até venenosa, outras vezes alguém que conta de um livro que leu, de sua relação com seus filhos, de como seu livro infantil foi recebido, das aflições do amor, de seus dias de ira. Em muitos momentos os textos parecem proverbiais, um espelho da alma, um exercício de compartilhar um conhecimento profundo do mundo, dos reverses da vida, do desafio imenso de existir. Não por acaso em muitos momentos dei risada, chorei, pausei a leitura para pensar e também me senti impelida a abrir um post no blog para comentar uma ou outra frase.


Ler "Todas as Crônicas" também foi um mergulho na História do Brasil na segunda metade do século XX. Clarice comenta os protestos estudantis, fala sobre uma novela da moda que ela assistia quando ficou internada depois se queimar em um incêndio, até mesmo Chacrinha ela comenta. Nunca em toda minha vida eu tinha visto ou ouvido alguém criticar esse apresentador de TV ou seu programa, muito pelo contrário.
"Chacrinha tem algo de sádico: sente-se o prazer que tem em usar a buzina. E suas gracinhas se repetem a todo instante - falta-lhe imaginação ou ele é obcecado.
E os calouros? Como é deprimente. São de todas as idades. E em todas as idades vê-se a ânsia de aparecer, de se mostrar, de ser famoso, mesmo a custa do ridículo ou da humilhação. [...] Será pela possibilidade da sorte de ganhar dinheiro, como em loteria, que o programa tem tal popularidade? Ou será por pobreza de espírito de nosso povo? Ou será que os telespectadores têm em si um pouco de sadismo que se compraz no sadismo do Chacrinha?" (pág. 28-29)
Ainda não superei o absurdamento de encontrar em Clarice uma autora engajada com as questões de seu tempo. Me pintaram ela como fada, diva, musa, uma autora com uma linguagem sem poética e idílica que se voltando para a vida interior esquecia-se da exterior, mas na realidade encontrei uma autora que abordou e denunciou a situação precária dos estudantes, a fome no Brasil, as desigualdades.
"Não, não tenho pena dos que morrem de fome. A ira é o que me toma. E acho certo roubar para comer." (pág. 30).
"Na verdade sinto-me uma autora engajada. Tudo o que escrevo está ligado, pelo menos dentro de mim, à realidade em que vivemos." (pág. 62).
"Só uma raiva, no entanto, é bendita: a dos que precisam." (pág. 145).

Tem momentos nos quais a autora chega a ser visceral quando se coloca no lugar de quem entende os sentimentos das pessoas que são vítimas das desigualdades e crueldades do século XX como no texto "É PRECISO NÃO PERDOAR"

"Há uma hora em que se deve esquecer da própria compreensão humana e tomar um partido, mesmo errado, pela vítima, e um partido, mesmo errado contra o inimigo. E tornar-se primário a ponto de dividir as pessoas em boas e más. A hora da sobrevivência é aquela em que a crueldade de quem é a vítima é permitida, a crueldade e a revolta. E não compreender os outros é o certo." (pág. 148).

De fato, o que mais me surpreendeu foi essa abordagem dos temas sociais por parte da autora. Eu esperava e encontrei, muitos textos com uma pegada existencial nos quais os sentimentos humanos são comentados com emoção e verdade, mas o social me surpreendeu bastante.

Então entre essas páginas encontroei os mais diversos temas possíveis: maternidade, amor, saudade, morte, uma série de entrevistas com pessoas celebres do século XX que vão de Neruda a Zagalo, criticas a Academia Brasileira de Letras e sua resistência de rever seu estatutos para aceitar as mulheres, relatos de experiências de vida, muitos comentários sobre a convivência com taxistas e empregadas domesticas e filhos e animais, uma um texto inteiro que é uma grande paráfrase ao poema "O dia deu em chuvoso" de Fernando Pessoa - Álvaro Campos.

Foram tantos os temas abordados que, apesar da circularidade de alguns temas que vão e voltam, cada virada de página foi uma surpresa. Em todas as manhãs nas quais pude sentar com uma xícara de café e "Todas as Crônicas" fui surpreendida e arrebatada pelo tema abordado pela Clarice. A leitura desse livro foi uma das melhores experiências que tive como pessoa leitora. Poderia escrever muito mais sobre esse livro, transcrever vários trechos, mas vou ficando por aqui dizendo que ler um volume tão magistral quanto esse foi um presente da vida, posso encontrar algo tão bom quanto, mas acho difícil encontrar algo superior.

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