quinta-feira, 4 de setembro de 2025

"O Vermelho e o Negro" de Stendhal [40 Livros Antes dos 40/10]

Desde meu primeiro momento diante da narrativa de Stendhal em "O Vermelho e o Negro" sentir vontade de escrever sobre ele, pois esse é aquele tipo de obra na qual o autor se propõe a botar todos os seus fantasmas para fora. Esse é aquele livro de "dizer tudo" e sendo assim invade a mente do leitor, envolve e causa impacto.

Escrito em frases curtas e capítulos concisos em "O Vermelho e o Negro" encontramos a história de Julien Sorel, morador da cidadezinha de Verrières localizada no interior de uma França pós-Era Napoleônica. Julien é um rapaz dotado de uma prodigiosa memória, inteligentíssimo, capaz de ler e entender com facilidade cativa o ódio e o ressentimento da família na mesma medida que faz com que o padre de sua cidade o trate como um verdadeiro filho lhe emprestando livros e conseguindo para ele um emprego como preceptor dos filhos do prefeito da cidade.

É através da narrativa da história de Julien que Stendhal vai nos contando suas impressões, ranços, ódios, rancores e tudo o mais sobre a situação social, econômica e cultural da França após o final dos eventos marcantes da França após a Era Napoleônica. Na minha opinião, escrever foi um grande exercício de colocar para fora os ranços que o autor trazia dentro de si, por isso digo e repito "esse é aquele livro de dizer TUDO". O problema, às vezes, com clássicos dessa natureza, é ter tido acesso ao conhecimento do momento histórico no qual o livro foi escrito para nos dar referencias capazes de nos fazer melhor entender a obra.

Essa foi minha segunda leitura deste livro, a minha primeira experiência com ele foi na adolescência e lembro que de toda história só ficou em mim os romances de Julien. Apesar do personagem ser o protegido de um padre que o emprega junto ao prefeito, pretendendo pavimentar o caminho dele para o clero da Igreja Católica Apostólica Romana, nunca em toda minha trajetória como leitora vi um personagem menos apto a se tornar padre. E mesmo agora, mais de vinte anos após a primeira leitura, ainda sustento que Julian é cachorro da moléstia, mulherengo, safadooo! O que eu passei de raiva com ele na adolescência, não passei nessa leitura, mas ainda acho ele safado.

Nessa segunda experiência o que ficou de tudo foi muito menos Julian e seus romances esquisitos e muito mais esse mundo pós-Napoleão, essas estruturas sociais muito cheia de hipocrisia, os grandes detentores de fortunas sobreviventes a Revolução Francesa se assentando no poder e desfrutando de seus privilégios enquanto a população mais pobre sofre. Me recordei muito da leitura de "Os miseráveis", no entanto com Victor Hugo nós caminhamos para dentro da vida dos pobres, esquecidos e indigentes, com Stendhal nós vamos mergulhar na vida dos muito ricos.

Caminhando com Julian conhecemos o ambicioso prefeito de uma cidade do interior que ferve em corrupção, depois vamos para um seminário onde percebemos o quanto de política e politicagem existe no processo de formação de um padre e na forma como uma vez formados eles são encaminhadas as paróquias onde servirão, até finalmente chegamos a uma grande casa senhorial em Paris. A ricolândia se desfolha diante de nós como um conjunto de pessoas que se sustentam por herança, por nome e renome, contatos, prestígio, acúmulo e manutenção de propriedades e dinheiro ao longo de séculos.

É de se revoltar! Pense naquela leitura que foi de causar revolta? Pensou! Foi "O Vermelho e o Negro". Ódio! Inclusive de Julian que eu achei um tonto há vinte anos atrás e continuo achando tonto. Um rapaz que mesmo sem contar com a ajuda de sua família conseguiu o apoio de um homem lúcido para lhe indicar o melhor caminho, mas se perdeu por si mesmo. Não sei bem se era essa a sensação que Stendhal quis construir através desse personagem, mas foi o meu sentimento. Oh macho troncho! Aliás, pense numa história recheada de pessoas medíocres. Se um dia eu pensei em ter dúvidas em relação ao fato que dinheiro antigo, conhecimento, linhagem superam talento, essa leitura me tirou todas elas.

E este não é um livro de denúncia, engajado em provar um ponto. Para mim ele emerge como um grande desabafo é mais um tratado sobre como a vida está posta diante de nós: um mar de hipocrisia. É como se o autor estivesse impregnado pelo gostinho da derrota dos anos de Revolução Francesa e Era Napoleônica, o sonho de "Liberdade, Igualdade e Fraternidade" engolidos por dinheiro antigo e privilégios de longa data. É um livro resignado que me fez ter raiva enquanto devorava vorazmente cada página.

Quando eu li "Os miseráveis" de Victor Hugo eu sofri a ponto de me sentir rasgada por dentro pela tragédia de todas aquelas pessoas desamparadas numa França arruinada, lendo "O Vermelho e o Negro" eu tive foi raiva. Ambos são livros incríveis que ampliaram minha perspectiva sobre o início do século XIX na Europa e trouxeram novas cores à minha prática como Professora de História. Um clássico é sempre um clássico.

A propósito, uma das coisas que me fez vibrar relendo esse calhamaço maravilhoso foi a sensação de estar me reencontrando comigo mesma. Eu tenho lembranças muito vívidas das sensações que tive quando li esse livro pela primeira vez. Lembro de como a adolescente ficou intoxicada pelos romances vividos pelo Julian e impactada com a forma como esses romances terminam, como já disse nunca antes houve um seminarista menos apto a ser padre que Julien.

Como explicar a sensação de estar lendo de novo o mesmo livro sendo uma mulher adulta e ao mesmo tempo me sentir adolescente? Me vi novamente vibrando com as passagens geniais desse livro, me envolvendo com os personagens, tendo raiva de Julian. Foi muito emocionante! Se eu fechasse os olhos conseguia sentir como era estar na biblioteca da escola lendo Stendhal numa tarde cheia de aulas vagas, minhas amigas prestes a chegar para me perguntar o que eu estava lendo e finalmente eu contar a elas como esse livro é esquisito, como Julian e suas amantes são totalmente sem explicação. De muitas formas foi mágico me encontrar novamente com esse livro, essa história, esses personagens.

Li "O Vermelho e o Negro" de Stendhal nas minhas férias de Janeiro, na casa dos meus pais, por isso a foto que abre o post é uma onde Lion está em cima do livro e a que vai fecha-lo é um momento onde estou comendo asinha de galinha com minha família, o livro na mesa, Kerla e Rafa de um lado, Mainha  Painho do outro. Da próxima vez que eu me pegar mergulhando neste livro talvez lembre da sensação de lê-lo na mesa da casa dos meus pais, com Painho vivo, um churrasco lá fora, a família se juntando na mesa, eu parando de ler para dá atenção às pessoas e falar de coisas que não tem a ver com o livro porque minha família, sobretudo meu pai, sempre tiveram um estranho ciúmes do tempo que passo lendo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário