domingo, 26 de março de 2023

"Ana Sem Terra" de Alcy Cheuiche

Todo livro tem uma história pessoal de como chegou a nossa estante. Alguns tem uma história bem trivial, foram simplesmente comprados e pronto. Outros tem uma história mais interessante, "Ana Sem Terra" de Alcy Cheuiche, por exemplo, chegou a minha vida através da Ana Seerig. Ele é um dos livros com os quais ao longo do tempo ela foi me presenteou, está em minha estante desde 2016, tem uma dedicatória carinhosa, só o peguei para ler  Janeiro deste ano de 2023, mas li mesmo em Fevereiro animada pelo fato de uma das amigas de virtualidade que compartilho com Dona Ana ter lido e comentado o livro "Ana Terra" do Erico Verissimo.

Saindo da história do livro e indo para a contada no livro, em "Ana Sem Terra" Alcy Cheuiche se propõe a navegar pela história recente do Brasil através da história particular de uma família brasileira de origem alemã cuja pequena porção de terra se encontra no Rio Grande do Sul. A história começa em 1958 e vai até 1990, um período de tempo tão grande pode fazer supor ser o livro um grande calhamaço, mas ele é bem sintético, entre um capítulo e outro o autor faz saltos no tempo. O primeiro capitulo acontece em 1958, no segundo já estamos em 1960, pode parecer esquisito, mas na prática funciona muito bem, a leitura é leve a ponto de ser possível ler o livro de um dia para o outro.


A família que acompanhamos é dos Schneider e, em nosso primeiro encontro a família é composta por um grupo de adolescentes e crianças órfãs: Gisela, a mais velha e chefe improvisada da família; Heide, uma mocinha que acabou de ter um filho e não sabe o paradeiro do companheiro; Willy, um rapaz que tenciona virar padre; e Ana, então uma criança. Em nosso primeiro encontro as crianças Schneider acabaram de perder o pai e estão defendendo o pedaço de terra que herdaram das mãos de um tio desonesto. O livro já começa com a tensão lá em cima e de onde menos se espera vem a salvação da lavoura familiar. Em um puro Suco de Brasil, a Gisela consegue o apoio do padre para ajudar ela a manter a guarda dos irmãos e a posse da terra.

Alcy Cheuiche é muito consciente de como o Brasil funciona, se a Igreja Católica Apostólica Romana foi muito cúmplice ao longo de nossa História de violências pesadíssimas, individualmente muitos padres se alinharam a resistência dos mais pobres, usando a influência que a batina confere para proteger os pobres e fracos diante dos mais ricos e fortes. Essa consciência de como acontece o jogo político e a luta de classes no Brasil no macro e no micro permeiam a narrativa inteira dos capítulos de "Ana Sem Terra" enquanto vemos Willy cumprir o serviço militar, conhecer uma família proprietária de terras, se tornar padre, se opor a ditadura militar, ser torturado enquanto sua família perder sua pequena propriedade e se vê dentro do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.

De capitulo a capitulo a gente vai vai avançando na história familiar dos Schneider e na própria História do Brasil, no clima anterior a Ditadura Militar, nos horrores da Ditadura, Cheuiche é muito claro ao falar de como os militares fizeram um governo corrupto, autoritário, violento, péssimo para as populações mais carentes do Brasil. Em determinado momento a história toma ares trágicos e dolorosos tal como trágica e dolorosa muitas vezes se torna nossa História dos Pobres no Brasil. Parece que a dor e a violência tem sido destinos inescapáveis para uma grande parcela da população brasileira menos favorecida.

A primeira edição de "Ana Sem Terra" foi publicada por volta de 1990, esse é um livro escrito a trinta e três anos atrás e nele já se encontra uma crítica a Anistia pós-Ditadura Militar em como essa atitude possibilitou a torturadores ocuparem cargos através dos quais puderam continuar a espalhar ódio e desigualdade pelo Brasil. A luz do que diziam pessoas conscientes dos caminho do Brasil em 1990, os fatos atualmente em destaque nos nossos telejornais da vida, o golpismo contra a democracia, a grande lavoura de soja invadindo florestas, o garimpo ilegal nas terras indígenas, o desmatamento da floresta para o gado bovino, o avanço da fome, o aquecimento global são tragédias antigas cujos desdobramentos foram anunciados.

A atualidade de um livro escrito 30 anos atrás me deixa aturdida e irritada, porém o mais surpreendente é que, mesmo tomando ares trágicos, o Cheuiche encerra sua história com um final incrivelmente otimista. É um livro que começa sendo histórico e ao final toma ares de ficção científica super otimista. Terminei a leitura absurdada com a capacidade do autor de pensar positivamente sobre o futuro, mesmo quando o presente tem ares tão sombrios. Claramente ele não contava com o quanto o brasileiro pode ser capaz de não ter empatia com o sofrimento dos oprimidos e normalizar a miséria utilizando um discurso meritocrático vazio de sentidos em um país tão desigual.

Apesar do século XXI a partir da sua segunda década ter tomado ares tão diatópicos, quero crer, tal como o Alcy Cheuiche, que o Brasil pode descobrir formas de preservar a História de lutas e resistência dos mais pobres desse país e assim para de viver um eterno looping de tragédias. Quem sabe algo de bom não nos aconteça e nós possamos dar uma guinada na nossa História para um lugar menos desigual? Tenhamos esperança!

3 comentários:

  1. Como eu queria ter a história de como os livros nos chegam documentadas, assim como você fez com esse livro e sua amiga Ana Seerig. Alguns eu consigo lembrar, mas confesso que a maioria já não sei do como veio parar na minha estante.
    Vou torcer para esse otimismo do seu livro se tornar realidade em nosso país.
    beijo
    ana paula

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  2. ah, tb gosto das histórias que os livros chegaram aqui. até pq eu gosto de ler livros não tão óbvios muitas vezes. e tb deixo na estante a ler às vezes por mais tempo que deveria. fiquei curiosa. beijos, pedrita

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  3. Eu não conhecia o livro, mas lendo aqui sobre ele, na hora me veio meu amigo Junior à cabeça. Cara, é o tipo de história que ele iria curtir! Particularmente não faz muito meu estilo, mas não tem como negar que a trama é bem interessante!

    =)

    Suelen Mattos
    ______________
    Romantic Girl

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