quinta-feira, 23 de março de 2023

"Casas Vazias" de Brenda Navarro & "A Via Crucis do Corpo" de Clarice Lispector

Não sei através de quais fios "Casas Vazias" de Brenda Navarro e "A Via Crucis do Corpo" da Clarice Lispector se conectam, nem mesmo sei se é possível os conectar de alguma forma, mas li ambos os livros em sequencia, quase sem querer e sem pausa, impulsionada pela narrativa envolvente das duas autoras e, ao fim da leitura, botei na cabeça, sem motivo que iria escrever sobre os dois livros em um único texto.

Em "Casas Vazias" a mexicana Brenda Navarro nos conta uma história sobre maternidade na América Latina. É um livro pesado, sem heroínas, recheado com tudo que nós mulheres conhecemos muito bem: solidão, misoginia, medo, violências inescapáveis. Ele é todo narrado em primeira pessoa por duas mulheres às voltas com a experiência da maternidade dentro de uma situação quase fantástica. Uma das mães conta a história a partir do momento no qual seu filho some do parquinho próximo a sua casa em um bairro rico da cidade, a outra a partir do momento no qual rapta uma criança de um parquinho de um bairro distante e o traz para sua casa no subúrbio pobre da cidade.


Nossas narradoras jamais são nomeadas, mas todos em sua volta o são: sogras, maridos, enteada, sogros, cunhadas, mães, pais, toda a constelação de pessoas que existem em torno de uma mão e tanto podem ser sua rede de apoio quanto de aflição, depende da hora, da cor e do cheiro. A maternidade na América Latina pode ser uma experiência muito solitária, muito atroz e é nesse ponto que a Brenda Navarro foca.

De um lado temos uma mulher cuja experiência da maternidade passa pelo trauma do sequestro de seu filho, uma criança autista ainda na primeira infância. Sendo uma mulher de classe média, com acesso à educação, ela nos apresenta sua culpa terrível, solidão abrasadora e reação a essa situação calamitosa de uma forma organizada, introspectiva e muito clara. Através de suas falas vamos conhecendo sua vida antes desse acidente terrível, durante e depois de tudo. Do outro temos uma mulher cuja experiência da maternidade começa de uma forma totalmente enviesada, com o sequestro de uma criança, agrava ainda mais uma existência marcada pela solidão, pela violência e pela constância de abusos até o ponto deles parecerem tão naturais quanto chover e fazer sol. A mulher que se torna mãe através do sequestro é menos instruída, periférica, trabalhadora, sua narrativa é tão caótica quanto a vida que leva e tem uma organização tão aleatória quanto suas reações diante da vida.

Foi uma experiência visceral acompanhar a vida, as reflexões e a forma como cada uma dessas mulheres administra sua vida. Foi aflitivo, emocionante, sofrível, irritante e revelador ler "Casas Vazias". Engoli em poucas mordidas, digeri já foi outra história. É bem complicado formular conclusões sobre personagens tão enviesadas, solitárias, vítimas de violências e ao mesmo tempo bem capazes de serem algozes de outras pessoas. Terminei a leitura sem chão, com o gosto amargo do desamparo bem forte na boca. Amei muito!


Decidi, depois de ler "Felicidade clandestina", colecionar Clarice Lispector. Ela é uma autora sensacional, simples, direta, sensível e emocionante. Eu fico absurdada com a forma totalmente despretensiosa através da qual Clarice conta suas histórias, o aterrador, corriqueiro, profundo e superficial aparece na narrativa dela de uma forma tão natural quanto o milagre de nascer em um mundo atroz como esse no qual vivemos. Então, poucos dias depois de terminar "Casas Vazias", ainda um pouco sem chão, peguei "A Via Crucis do Corpo" para dar uma olhada e terminei lendo de uma vez só, em um gole.

Em "A Via Crucis do Corpo" encontramos uma coletânea de contos feitos pela Clarice por encomenda de seu editor. A ideia era que ela escrevesse histórias que realmente aconteceram e entre o dia 12 e 13 de Maio ela escreve. Lendo esse livro tive a impressão de ter passado um dia inteiro com a Clarice, tomando café e ouvindo ela contar essas histórias. Ela sozinha em casa, eu sozinha em casa, ela falando, eu ouvindo, como se o apartamento dela se fundisse ao meu e nós realmente estivéssemos no mesmo espaço sem separação de tempo.

Cada história parece uma história secreta, coisas sobre as quais as pessoas que viveram talvez não gostassem de comunicar ao mundo, sensações da intimidade e do desamparo da própria autora. Os contos são diferentes histórias, mas se conectam um ao outro enquanto são escritos todos, um após o outro nesse fim de semana, entre o dia das mães de 12 de Maio e o dia 13 de Maio, dia da Abolição da Escravidão. Contos lúdicos, profundos, com a pretensão de serem verdadeiros, e, mesmo quando são absurdamente fantásticos, acredito em tudo que Clarice me contou, nesse dia no qual nossas solidões se encontraram.

"Quando a gente começa a se perguntar: para quê? então as coisas não vão bem. E eu estou me perguntando para quê. Mas bem sei que é apenas "por enquanto". São vinte para as sete. E para que são vinte para as sete?
Nesse intervalo dei um telefonema, e para o meu gáudio, já são dez para as sete. Nunca na vida eu disse essa coisa de "para o meu gáudio". É muito esquisito. De vez em quando eu fico meio machadiana. Por falar em Machado de Assis, estou com saudade dele. Parece mentira mas não tenho nenhum livro dele em minha estante. José de Alencar, eu nem me lembro se li alguma vez.
Estou com saudade. Saudades dos meus filhos, sim, carne de minha carne. Carne fraca e eu não li todos os livros. La chair est triste.
Mas a gente fuma e melhora logo. São cinco para as sete. Se me descuido, morro. É muito fácil. É uma questão do relógio parar. Faltam três minutos para as sete. Ligo ou não ligo a televisão? Mas é que é tão chato ver televisão sozinha.
Mas finalmente resolvi e vou ligar a televisão. A gente morre às vezes." (pág. 45)

2 comentários:

  1. não li esse da clarice, agora q descobri que a vizinha tem todos vou aos poucos lendo os q não li dela. e não conheço a outra autora e já anotei. não li em detalhes a sua resenha pq não li os dois, vou depois ler com calma depois de ler. beijos, pedrita

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  2. Interessante a conexão entre os dois livros que conseguiste fazer. Devem ser muito bons! beijos, tudo de bom,chica

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