domingo, 6 de fevereiro de 2022

"No útero não existe gravidade" de Dia Nobre


"No útero não existe gravidade" interpolou minha lista de livros a serem lidos. Em um momento nem sabia da existência dele, no outro estava agarrada com ele madrugada a dentro mergulhando na narrativa abrasiva da Dia Nobre, graças a uma amiga com olhos de lince para livros divergentes.

Nele acompanhamos uma personagem que abre as portas de suas histórias de suas dores desde a infância até a vida adulta e sua percepção da realidade. Não estou certa se dores geram aprendizados, mas quando a gente sobrevive a elas, ou convive com elas, e consegue organizar nossos sentimentos em narrativa alguma coisa fica, alguma coisa é possível exprimir. Talvez não haja sentido para a dor, mas, ainda concordo com o Salmista: "um dia ensina ao outro dia, uma noite revela conhecimento a outra noite.".

Explorando as profundezas das confissões encontrei muito de mim, muito dos meus. É sempre muito inquietante para mim encontrar identificação nesse tipo de narrativa, não sou dada a insônias, mas rolei na cama umas duas horas depois de ler 50% do livro. O impacto não foi pequeno. A linguagem fácil flui, porém a Dia Nobre não dramatiza em cima de dores tão profundas e meu corpo sentiu falta de uma via de catarse, absorvendo as pancadas na carne, sentindo os hematomas se formando.

Aliás, a ausência de dramatização em cima de experiências traumáticas é um ponto fortíssimo do livro, uma de suas melhores qualidades. Acho muito vulgar quando artistas exploram as dores humanas ou de outros seres esvaziando seus sentidos transformando-as em dramalhões aos quais a audiência acompanha se deliciando em choro recreativo.

Voltando ao livro, depois de duas horas rolando na cama, dormi, ao acordar a primeira coisa que fiz hoje foi ler os 50% finais do livro e qual não foi minha surpresa ao encontrar entre as páginas desse pequeno grande livro referência a um dos meus contos favoritos do "Bestiário" de Julio Cortázar. A protagonista da Dia Nobre escreve para a pessoa que escreveu uma "Carta a uma senhorita em Paris". Achei reconfortante reencontrar aquela pessoas que vomitava coelhinhos destruidores de apartamentos parisienses.


Essa foi uma leitura que de ontem para hoje abriu muitos buracos, no entanto, para minha surpresa, assim como a manhã preenche de luz a escuridão da noite para quem consegue acordar, esse é um livro que fecha os buracos que abre. Finalizei a leitura e vim aqui reafirmar que também eu encontro-me decidida a viver, a respirar. Estou respirando. Mesmo precisando da ajuda do sulfato de salbutamol para fornece ação broncodilatadora, sinto o oxigênio nos meus pulmões e a perspectiva de transformar labirintos em caminho.
"você já morou em uma casa com uma bomba-relógio? ás vezes,  o labirinto é um campo minado e a gente não sabe em qual passo o chão vai explodir. o silêncio é cortante no labirinto-casa. você já se perguntou se é possível entrar e sai pela mesma porta?

o labirinto pode ser também a nave de uma igreja. você se perde entre os bancos-altares-confessionários-empalados-esfaqueados. corpos abertos mostrando os órgãos internos. esse é um lugar que te apresenta formas lentas de morrer. a culpa é o mármore do labirinto-igreja.

um labirinto pode ainda ser o corredor imaculado de um hospital. álcool-agulhas-luvas. tudo desinfetado. no beco sem-saída, a angústia tomando soro. o medo é o ar que enche os pulmões.

eu poderia enumerar infinitamente as possibilidade de ser perder em um labirinto-cemitério que se abre em monumentos e terra molhada. que esconde o pranto nas estátuas de anjinhos e donzelas de cabelos longos, coroas de flores e âncoras. foi em um desses que encontrei a lápide de antônia, innocente e interessante anginha fallecida aos três anos da febre tifoide deixando saudades e dores eternas no collo de sua mãe, pae e irmães. a saudade é adubo.

arquiteta dos meus próprios caminhos, deixei de desenhar labirintos e passei a construir estradas. como a via romana. com pedras cordiformes e muitas árvores ladeando as margens. me percebi outra. água decantada de uma nascente.

não preciso mais procurar uma saída."
E sim, preciso dizer: "O Aleph" de Jorge Luís Borges, livro repleto de labirintos, é uma das minhas próximas leituras. Dia Nobre dialoga lindamente com o melhor da literatura e fez o melhor que a literatura pode fazer. Estou apaixonada por uma autora abrasivamente maravilhosa. 

5 comentários:

  1. Eu não conhecia esse livro, mas pela sua resenha, realmente é um achado e tanto. Fora a emoção que ele pasa e ainda cita outras obras tão incríveis quanto. É uma maravilha quando os livros nos picam e nos mordem dessa forma, pois nos fazem crescer em algum sentido.
    Bjks!

    Mundinho da Hanna
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  2. concordo com vc, ninguém deve sofrer pra aprender. o q aquelas crianças na síria, etiópia passam. o q as crianças q sofrem abusos passam, nao é aprendizado, é estrago pra vida toda. acho que eu não leria esse livro. esse do borges eu não li. beijos, pedrita

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  3. Queria que esse tipo de leitura me chamasse atenção, mas com certeza eu não teria a mesma experiência que tu
    Beijos
    Balaio de Babados

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  4. Oie, tudo bem?
    Ainda não conhecia, mas parece ser um livro bem profundo, valeu pela dica!
    Blog Entrelinhas

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  5. Me sinto honrada com sua resenha e com as conexões que você conseguiu estabelecer. Feliz de compartilhar referências contigo! Obrigada!

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