domingo, 1 de agosto de 2021

Enrolados, Rapunzel e Eu

 

Vi "Enrolados" pela primeira vez no cinema. Parece ter sido ontem e ao mesmo tempo em outra vida, uma vida beeeem distanteeee. Lembro bem do impacto desse filme no meu coração, me identifiquei muito com a personagem, fiquei encantada com os efeitos especiais em 3D, foi um dos primeiros que fui vê sozinha no cinema. Lembro te ter ido sem nenhuma expectativa, só estava fugindo da possibilidade de passar mais uma tarde em casa arriscando uma briga fenomenal com meu pai, encontrei o filme em cartaz, fiquei maravilhada com a possibilidade de ver essa história, pois gosto bastante da história da Rapunzel.

Antes de ver "Enrolados" já tinha lido várias versões da história de Rapunzel e em nenhuma delas a personagem é uma princesa por nascimento. Nas versões as quais tive contanto, a menina é filha de um casal de camponeses, durante a gestação a mãe dela tem desejo de comer uma fruta do jardim de uma vizinha, uma bruxa, a qual faz uma acordo com o pai dela: "Te dou a fruta e você me entrega sua filha quando ela nascer.". O pai dela topa o acordo, quando a criança nasce a bruxa executa o acordo para desespero dos pais da garota e prende ela numa torre na qual sobe e desce usando o cabelo jamais cortado da menina até o dia no qual aparece um príncipe e muita coisa acontece.


Na infância e adolescência me identificava com a Rapunzel por ser uma menina muito presa, meu pai não me deixava sai para lugar nenhum, só a mãe dele passava por cima da ordem dele e me levava com ela para a Igreja e coisas do gênero; tinha uma longa transa, devido a tabus religiosos meu cabelo não era cortado, nunca consegui administrar a logística do cabelo grande sem usar o recurso da transa; e gostava muito me empoleirar na janela para pensar, como disse Fernando Pessoa:
"Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?)..."

O filme mexeu um pouco na história contada nos livros. Eliminou o momento barganha entre o pai da menina e a bruxa, presenteou a Rapunzel com o titulo de princesa, conferiu ao cabelo dela poderes mágicos e criou novas camadas de vilania a bruxa que é vaidosa, egoísta. A bruxa sequestra a princesa de seu berço e a mantem isolada numa Torre para usufruir do milagre contido em seus cabelos. Não desgostei dessas mudanças, o livro é o livro e o filme é o filme. Para mim, a equipe de roteiristas foi muito feliz na construção da história e as mudanças potencializaram ainda mais minha identificação com a personagem.


A Mamãe Gothel, bruxa do filme, tem comportamentos EXTREMAMENTE parecidos com os do meu pai. Meu Deus, como meu pai é sufocante! Ele tem esse comportamento tóxico de construir uma narrativa onde o mundo aparece como um lugar de inúmeras armadilhas e eu uma pessoa incapaz de avançar diante dessas armadilhas. Já disse o quanto Painho é sufocante? Meu Deus, ele é!

Aos vinte poucos anos me identifiquei muito com a Rapunzel em sua Torre lendo um livro, dois ou três... querendo ir ver as luzes, presa, sem conseguir sai daquilo. A canção de Gothel eu sei de trás para frente de tantas vezes ouvi ao longo da vida. Quando Rapunzel toca pela primeira vez com o pé no chão fora da Torre é o retrato fiel de como me senti quando saquei meu salário no banco pela primeira vez e viajei com meus amigos da universidade. Aos vinte anos aquilo foi para mim como sai da Torre.

Em 2010 eu já tinha terminado minha graduação, ainda morava com meus pais e estava morrendo de medo de me tornar novamente uma menina com cabelo transado presa na torre, até comprei o DVD da Disney para rever o filme e tentar fugir desse destino de Rapunzel, seguir minha vida e sai da Torre do meu pai.


Essa semana recebi a visita da filha de uma prima minha, ela tem seis anos, é uma criança muito querida e, para minha surpresa, sou mais amiga dela do que jamais fui da irmã dele. Bia é uma criança muito curiosa, mexe em tudo (com meu consentimento) e acabou encontrando esse DVD. É um filme do qual ela gosta, sabe todas as músicas, como eu, pediu para vê comigo e, mais de dez anos depois daquela tarde no cinema, me vi novamente encantada com a trama de "Enrolados", envolvida pela história e pela trilha sonora.

Foi uma experiência  impactante, está sendo impactante digerir essa experiência, percebendo o quanto em vez de me libertar da Torre, hoje me sinto ainda mais presa dentro dela. Meu pai não mudou nada e me pergunto se eu não regredi mil anos.

O grande poema "Tabacaria" de Fernando Pessoa sempre foi um texto importante em minha vida e agora não é diferente:
"Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Falhei em tudo."
Preciso descer dessa Torre e é urgente! No filme "Enrolados" a Rapunzel sai da Torre quando aparece um ladrão fugitivo com o qual ela faz uma barganha. Depois de ver o filme algumas vezes é fácil perceber o quanto ela podia ter saído sozinha muito tempo antes, o impeditivo era o medo. Nesse momento estou assim: entre o impeditivo do medo e a necessidade de descer e tocar com meu pé a grama existente do lado de fora da Torre.

Nos últimos anos passei um bom tempo me sentindo muito vazia, com o total de zero objetivos. Não tinha nenhum sonho para me impulsionar da esquerda para a direita, de dentro para fora, de baixo para cima. Só muito recentemente descobri o quanto precisava sonhar qualquer sonho, qualquer futilidade serviria e achei e gostei e voltei a sentir o quanto sonhos nos dão forças nos momentos de fraqueza. Muita gratidão a Luci, ao ELF, ao KPOP, ao Super Junior e ao Yesung por ter me colocado de volta dentro da comunidade das pessoas com desejos no coração.


Revendo "Enrolados" com Bia percebi o peso dos "tantos dias olhando das janelas, tantos anos presa sem saber, tanto tempo nunca percebendo como tentei não ver" o quanto "eu tenho sim, um sonho sim, que as lanternas flutuantes são pra mim". Quero muito ser mais livre, ter meu próprio lar, me sentir menos sufocada, viver sem pisar em ovos, para de tentar evitar o inevitável, obter uma felicidade tranquila, essas são as minhas lanternas flutuantes. Sonho com elas, oro a Deus pedindo por elas, espero que elas sejam para mim.

5 comentários:

  1. eu não vi. a história da rapunzel sempre me impactou tb. imagino como hj muitas meninas venham se sentindo presas nas torres pelas precauções da pandemia. beijos, pedrita

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  2. Que texto maravilhoso, Jaci!
    Os contos e suas releituras geralmente são uma boa ferramenta de reflexão!
    Rapunzel é ótimo, também assisti no cinema com o filho que deve ser um pouquinho só mais jovem que você.
    A presença da figura paterna ou materna pode ser um problema, independente do afeto, somos pessoas diferentes, ninguém tem obrigação de ser o que os pais esperam, isso pode ser um peso muito doloroso de carregar. na prática nem sempre é fácil se livrar das amarras, inclusive financeiras, podendo se prolongar, mas a meta de ser livre, juntos ou separados, é essencial para a saúde mental. Eu mesma algumas vezes tenho que lidar com temas complicados com minha mãe e também com o filho, mesmo os amando muito.
    Ainda bem que as princesas mudaram, estão sempre na busca de melhores escolhas para si. E olha que não é fácil, e tá tudo bem, é assim mesmo, nada na vida é fácil.
    Como sempre adorei a leitura, abração!

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  3. E interessante o quanto as obras artísticas (literárias, cinematográficas, etc.) podem afetar a gente, né? E as tais estórias dos 'contos de fadas' geralmente têm mensagens ocultas, que são também como que compreendidas pelo inconsciente da gente.
    Quanto ao pai quase doentiamente controlador, isso, infelizmente, é ainda muito comum. E o pior é que esse comportamente não costuma ter o efeito desejado. Por coincidência, acabei de ler um livro em que o 'protagonista' - rapaz de 18 anos - provoca uma verdadeira revolução, na própria vida, apenas para fugir do controle sufocante de um pai assim (devo falar desse livro em breve, no blog).

    Beijo e boa semana

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  4. Também gosto muito deste conto e que pode ser bem utilizado através dos livro na biblioterapia. Mensagen que despertam ótimas reflexões. Filmes, cinema, foram ótimas estratégias para seu desconforto e que levou à uma viagem interior, início principal para sua jornada para sonhar e realizar. Boa tarde

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  5. Sou apaixonado nesse filme desde pequeno, acho que olhei varias vezes quase todas as versões.
    Sempre senti que onde moro não é meu local, talvez por isso.
    Legal como nos identificamos com partes diferentes do filme.

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