terça-feira, 12 de maio de 2020

Medo

Outro dia me meti em um acidente de carro em uma noite chuvosa. Estava voltando de um encontro com uma amiga, um carro bateu em cheio na porta traseira do uber no qual eu viajava. No pequeno espaço de tempo entre o impacto da minha cabeça no vidro e ser jogada para o lado pensei: "É assim que se morre."

No longo espaço de tempo após o acidente, conferi as partes do meu corpo, encontrei meu óculos, olhei em torno, falei qualquer coisa para o motorista e pensei no quão inoportuno seria morrer numa noite assim com chuva que Deus mandava, voltando de um encontro com uma amiga, meus pais em há três cidades de distância, em um domingo... Que bom não ter morrido ali, não era um bom momento para morrer.


Mesmo agora, três meses depois do acidente, considero ter feito todas as coisas com as quais sonhei: viajei, estudei, fiz uma coleção de livros... por um mistério da humanidade nem mesmo dividas a serem pagas por terceiros eu deixaria, no limite dos meus 33 anos vivi, estudei, amei, e até cri e não, não invejo alguém só por não ser eu.

Não tenho mais grande sonhos a realizar e já me habituei a essa sensação, aprendi a viver preenchendo os espaços vazios dos dias, das horas, dos minutos, das aulas a serem ministradas, da poupança, das férias, dos dias de folga, das folhas dos cadernos até mesmo do estomago.

Aprendi a me prender a vida pelos vínculos das relações e compromissos estabelecidos com as pessoas amigas e meus estudantes... Me prendo pelo fio das coisas que preciso fazer, planejar, lutar, ler, executar.

Em geral me sinto bem. Em especifico me sinto cansada.

Como os estudantes ocupam a maior parte do meu tempo há quem pense que faço as coisas com o intuito de fazer a diferença na vida deles. A coordenadora da escola (uma pessoa admirável em muitos sentidos) costuma dizer: "Se você puder salvar um aluno, salve!". Honestamente, o afeto dedicado a meus estudantes faz diferença mesmo é na minha vida. Tenho a nítida sensação de salvar só a mim mesma quando me dedico a eles.

E se perdi a capacidade de montar grandes sonhos e o desejo de viver uma epopeia digna de Gilgamesh adquiri um novo temor. O sombrio medo de perder a saúde, de depender das pessoas conhecidas e das desconhecidas. Outro dia meu irmão me disse: "Quem adoece onera a família.". Isso rendeu uma discussão imensa, criou uma magoa enorme em mim e fundou os alicerces desse medo atroz da dependência.

É engraçado essa coisa de ter medo, sempre pensei no medo como algo constrangedor. Pensava nos sonhos como motivo de orgulho, afinal são motores e combustíveis para tantas coisas, os medos eram vexatórios, pois acreditava serem coisas paralisantes. Agora, nesse momento no qual na falta de um grande sonho pessoal adquiri um medo atroz, descobri o quanto estava enganada sobre a potencialidade do medo. Os medos são tão capazes de nos mover quanto os sonhos.

Meu medo da dependência me moveu muito ao longo de 2019. Aprendi a me alimentar de forma menos negligente, a me exercitar, a tomar vitaminas, ouvir música leve como o k-pop coreano. Fui ao dentista antes da dor de dentes, coloquei dinheiro na poupança. Me segurei desesperadamente no presente, caminhei um passo de cada vez pelo terreno insólito do agora, não viajei, mas recebi a visita de um viajante, presentei pouco, pois ainda me sinto vazia para mim mesma, mas recebi um presente maravilhoso desse visitante.

O medo não é uma mãe amorosa como os sonhos, ele não pinta estrelas no teto do quarto para você imaginar os mundos possíveis de serem alcançados. Também não é um pai provedor, ele não compra sorvete para adoçar e refrescar um fim de tarde quente antes do calor e do cansaço ameaçar te amargar ou sufocar. Ainda não sei se há paralelo na vida doméstica para as ações do medo. Talvez ele seja um irmão mais novo capaz de dizer palavras ásperas sem pudor de ferir teus sentimentos. Não tenho certeza.

Comecei a escrever esse texto meses atrás, ainda com o corpo dolorido pelo acidente de carro, estou concluindo ele agora e a vida na qual existimos hoje as vezes me parece improvável a ponto de outra noite eu ter me pegado pensando se não morri naquele acidente e agora estou no purgatório.

Estamos vivendo em uma época de medo generalizado, a Pandemia do Covid 19 somada ao governo fascista de Bolsonaro limita nossas liberdades, poda a possibilidade dos sonhos, até mesmo para quem ainda os tem, ameaça nossas vidas. Desde março não vejo meus estudantes, sinto falta da presença física das pessoas amigas, o futuro se tornou um terreno de incertezas, "o céu está parado, não conta nenhum segredo/ a estrada está parada, não leva a nenhum lugar/ a areia do tempo escorre de entre meus dedos/ [...] o sol põe em relevo todas as coisas que não pensam/ entre elas e eu, que imenso abismo secular...".

3 comentários:

  1. o medo é muito responsável pela nossa sobrevivência. é o medo que faz muitos ficar em isolamento e proteger a todos. e acho difícil nesse momento não se ter medo, só se estiver em processo de negação. não só medo por nós, mas pelos outros. se cuida. beijos, pedrita

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  2. Jaci, que texto maravilhoso, profundo, perfeito, com toda sua sensibilidade.
    Tá td muito estranho, até eu que já tenho 57 e não tenho uma possível vida interessante lá fora, estou ficando angustiada com essa incerteza morna, principalmente por estarmos sendo desgovernados pelo meteoro descontrolado. Medo move, certamente e principalmente qdo não temos controle de nada, nem dos danos que podemos causar mesmo que involuntariamente aos outros que amamos.
    Abração e cuide-se na medida do possível.

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  3. Ainda bem que você não morreu, e se sentiu impulsionada à fazer tantas coisas em tão pouco tempo. Também quero fazer muita coisa antes de partir, mas já não tenho medo caso minha hora chegue

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