Janeiro foi um mês muito longo mesmo. Senti como se tivesse vivido um ano dentro de um mês, muita coisa aconteceu e tenho vontade de escrever sobre elas. Algumas escrevi a mão em meus cadernos e cabe transcrever, outras ficaram no mundo das ideias. Quero escrever aqui, mas não dou certeza. Certo mesmo é que quando o feriado de Carnaval aflorou no horizonte larguei minhas coisas em casa e vim para a casa dos meus pais com um livro de Clarice Lispector na bolsa e a escolha não foi aleatória, pensei mesmo no fato de um livro intitulado "Laços de Família" combinar muito bem com a decisão de passar esses dias com os meus e as minhas.
Apesar de meu primeiro contato com a escrita da Clarice ter acontecido há 23 anos atrás, "Perto do Coração Selvagem" era um título de livro absolutamente irresistível a curiosidade de uma menina de 15 anos, só me tornei verdadeiramente uma leitora dessa autora tão incrível após os 30. Não existe tempo errado para ler uma autora da grandeza de Clarice Lispector, no entanto, nada como a maturidade para ajudar no aprofundamento da compreensão da narrativa clariciana. Tem sido sensacional adentrar no mundo doméstico, sensível, humorado, luminoso, fugaz e sincero dessa autora.
Em "Laços de Família", nós adentramos no mundo familiar de algumas mulheres, homens e adolescentes da classe média do Rio de Janeiro. Somos convidadas a viver com essas pessoas momentos absolutamente corriqueiros que tranquilamente, quase imperceptivelmente vão avançando até chegar uma virada na qual ocorre o tudo e nada da epifania capaz de mudar tudo na forma como a pessoas existe e percebe a realidade.
O livro é uma coletânea de contos e em cada conto uma epifania grande ou pequena acontece transtornando os personagens e talvez quem ler também. A maior parte dos protagonistas são mulheres, porém também temos uma galinha como protagonista no divertido conto "Uma Galinha", em "Começos de uma fortuna" um rapazinho às voltas com seu primeiro encontro com uma namoradinho e "O crime do professor" tem um homem lidando com a culpa por uma decisão infeliz em relação ao cachorro da família.
Não se pode elencar nem mesmo um conto mais frágil nessa coletânea. TODOS são absurdamente IMPECÁVEIS! Esse livro é um presente para alma leitora, de ponta a ponta serve excelência, por derradeiro é um clássico da Literatura Brasileira por direito. Todavia os meus contos favoritos foram "Amor" no qual conhecemos Ana, uma dona de casa meticulosa na manutenção da ordem de seu lar que de repente é surpreendida pela grandeza da vida enquanto no bonde, ao voltar das compras, com os ovos quebrando dentro de uma bolsa de tricô. O tempo todo eu olhava a Ana e pensava: "Ana, vai viver Ana! Ana o mundo é maior que nossa casa Ana! A vida passa mais rápido que o bonde!". Quando a vida explodiu diante de Ana eu só queria estar ao lado dela e dizer: "VAI VIVER!"
"Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto - ela o abafava com mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranquila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera." ("Amor", pag. 19)
O conto que mais me despertou ternura foi "A imitação da rosa". Se pudesse entrar dentro de uma história e abraçar uma personagem, nesse momento, abraçaria Laura com ternura e afeto pois são absurdamente frágeis as estruturas capazes de sustentar a nossa conexão com a realidade e as suas demandas. Laura sentada em sua sala de estar, olhando o vaso de flores, ponderando sua vida. Laura tem todo meu amor e ternura.
"As rosas faziam-lhe falta. Haviam deixado um lugar claro dentro dela. Tira-se de uma mesa limpa um objeto e pela marca mais limpa que ficou então se vê que ao redor havia poeira. As rosas haviam deixado um lugar sem poeira e sem sono dentro dela. No seu coração, aquela rosa, que ao menos poderia ter tirado para si sem prejudicar ninguém no mundo, faltava. Como uma falta maior. (A imitação da rosa, pág. 47)
O conto "Preciosidade" é uma história de suspense muito bem escrita. Nesse conto, uma menina de 15 anos sai sozinha, ainda de madrugada, rumo à escola. Ela estuda longe, é preciso fazer uma pequena caminhada, pegar ônibus, pegar bonde. É absolutamente aflitivo estar com ela nesse caminho e, para nós mulheres, as explicações chegam a ser até desnecessárias. A vida de uma adolescente pode ser muito assustadora dentro de uma cidade. Mesmo hoje, quando nós mulheres já nos empoderamos tanto e de tantas formas, ser e estar no mundo não é fácil, imagine entre as décadas de 1940 e 1960?
Comentar um livro impecável como esse é um desafio, minha vontade é escrever um pouquinho sobre cada conto, sobre como ele coloca em alto relevos os sentimentos que preenchiam os silêncios das mulheres do século XX, sobre como mostram a vastidão do universo feminino, sobre como podem nos ajudar a perceber a capacidade do machismo de produzir homens medíocres, tacanhas, covardes, aproveitadores dos privilégios que as estruturas sociais os brindam para terem uma boa vida.
Não posso dizer que em "Laços de Família" Clarice emerge como uma feminista lutando pelos direitos femininos, mas eu certamente sou uma mulher feminista e me dói está diante de histórias escritas no século XX e perceber o quanto a ordem social das coisas sufocou aspirações, desejos e sonhos de mulheres com potencial incrível enquanto permitiu a homens brancos o privilégio de serem pessoas absolutamente medíocres e ainda assim bem sucedidas.
Os contos de Clarice Lispector são uma leitura capaz de nos apresentar o século XX, o tempo de nossas avós e avós, de uma forma muito sensível, honesta, aberta e lúdica. Ler essa autora magistral tem sido uma experiência maravilhosa, encantadora. A cada leitura me sinto cercada pelo sentimento de descoberta do mundo, não são poucos os momentos de epifanias e alumbramentos.
esse livro ficou comigo um tempo acabei devolvendo sem ler. linda essa capa. janeiro foi intenso tb. beijos, pedrita
ResponderExcluirEu tenho este livro há muito tempo, vez por outra releio alguns dos contos.
ResponderExcluirO conto da Ana é primoroso.
ResponderExcluirEste título da Clarice sempre me chamou a atenção. Peguei o livro algumas vezes na biblioteca, mas não consegui dar sequência. Acho que tem relação com o que você mencionou sobre o momento da leitura. Acho que não tinha maturidade suficiente na época. Tuas palavras neste post fez acender novamente minha vontade de ter a obra em mãos! Quem sabe desta vez eu consiga!? Venho aqui te contar! =)
ResponderExcluirUm abraço!
Que vontade de ler este livro! Vai para minha lista de livros a serem lidos. =)
ResponderExcluirOi, querida.
ResponderExcluirConfesso que fiquei bastante curiosa para ler.
Beijo, beijo.
She