quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

"O Minotauro" de Monteiro Lobato


Comecei a ler Monteiro Lobato com nove anos, quando minha vizinha ganhou edições de "Caçadas de Pedrinho" e "O Saci" do patrão dela e me emprestou. Naquela época achei uma leitura muito divertida, gostei muito de acompanhar as aventuras de Pedrinho mata adentro, quis ser Pedrinho, procurava um Saci dentro de todos os pequenos redemoinhos formados por folhas de árvores da vida. Quando encontrei na 5ª Série, atual 6º Ano, um vol. de "Os 12 Trabalhos de Hércules" na biblioteca da escola e fui lá ler novamente.


Descobri ao longo da leitura de "Os 12 Trabalhos de Hércules" que o livro era a continuação de "O Minotauro", apesar de meu incômodo com Monteiro Lobato ter começado exatamente nessa leitura, fiquei com vontade de ler o volume anterior, mas eu tinha 12 anos, o tempo da escola parecia tão infinito os livros da biblioteca escolar... e então o tempo foi passando, agora tenho trinta e sete anos... e fui ler "O Minotauro" em uma edição lindamente ilustrada por Odilon Moraes com a qual minha amiga Claudinéia me presenteou.

A Editora Globinho trabalhou essa edição com ilustrações, espaçamento, tamanho das letras, apresentação do João Anzanello Carrascoza e posfácio contanto um pouco da história do Monteiro Lobato. É um livro todo vestido para crianças leitoras e honestamente acho isso muito ruim. Monteiro Lobato, mesmo em sua obra infantil, hoje é um autor totalmente inadequado à infância. Ele é um autor que precisa ser lido? Com certeza! Porém não por crianças em fim de infância ou adolescentes de 12 anos.

Trata-se de um autor com uma visão de mundo extremamente racista, machista e eurocêntrica com uma escrita sedutora e muito lúdica. Quais as defesas que as crianças brancas, negras, indígenas, pardas podem ter contra esse tipo de ataque? As brancas vão se sentir muito donas do mundo, as indígenas vão apagadas da história e inferiorizadas tratadas como "só bugres" (pg. 18), as negras vão sofrer o impacto das falas de Emília sobre "a pobre Tia Nastácia" (pág. 19) e as pardas nem existem na narrativa lobatiana.


Dito isso, para quem já tem um conhecimento básico de mundo e da História do Brasil, já tem certa blindagem contra narrativas violentas, os livros infantis do Lobato fornecem uma experiência de leitura muito instrutiva. Eles são um documento muito interessante para conhecer o projeto de Brasil que andava pela cabeça das elites brancas do Brasil no início do século XX, a estrutura da sociedade brasileira no pós-abolição, a condição da mulher negra, os papéis de gênero atribuídos a homens e mulheres desde a infância, como as nossas heranças históricas indígenas e africanas foram propositalmente apagadas em detrimento da tentativa de construir vínculos históricos do Brasil com a Cultura Europeia, especificamente Grécia Antiga.

Em "Os 12 Trabalhos de Hércules", lembro bem, a gente viaja por uma Grécia Mitológica, conhecemos os deuses e deusas, heróis, feiticeiras e monstros. A aventura acontece por Pedrinho ser apaixonado pelo Hércules e quem viaja com ele é Emília e o Visconde, Narizinho fica no Sítio. Olhe, que esse ficar de Narizinho no Sítio até hoje não me desce. Em "O Minotauro" a viagem começa depois do sequestro de Tia Nastácia que ocorre quando monstros gregos invadem o casamento da Branca de Neve com o Príncipe Codadade narrado no livro "O Picapau Amarelo". Para resgatá-la, as crianças e Dona Benta pegam o navio "Beija-flor das Ondas", antigo Navio Pirata do Capitão Gancho, rumam para Atenas e no caminho tomam um banho de cultura grega.

Monteiro Lobato coloca na voz da Dona Benta suas opiniões sobre a cultura brasileira e do mundo para ele:
"a maior parte de nossas ideias vêm dos gregos. Quem estuda os filósofos gregos encontra-se com todas as ideias modernas, ainda as que parecem mais adiantadas." (pág. 20).

"A Grécia está no nosso idioma, no nosso pensamento, na nossa arte, na nossa alma; somos muito mais filhos da Grécia do que de qualquer outro país. Até Quindim é bastante grego, apesar de ter nascido na África, já que é paquiderme e rinoceronte. Paquiderme é uma palavra que vem do grego: pachy, grosso, e derm, pelo ou couro. [...] E rinoceronte é a palavra que vem do grego rhinoceros: rhino, nariz, e ceros pele ou couro." (pág 21)

É claro que não passa pela cabeça de Dona Benta explicar às crianças o Neocolonialismo, a exploração europeia imposta a África pelos europeus ao longo do fim do século XIX e início do século XX, a forma como as culturas africanas foram violentadas de várias formas até mesmo na forma como em vez de tentar entender a forma como as pessoas africanas nomeavam os animais de sua fauna e flora os europeus preferiam renomear, tomar posse e dividir entre si o continente inteiro. Não passa pela cabeça do Lobato ou da Dona Benta, pois para eles o que nós já entendemos que foi violência era apenas o homem branco levando progresso aos bárbaros.


E voltando a Cultura Brasileira, não precisa ir muito longe em termos de exercício de observação para perceber o quanto a cultura brasileira é muito mais afro-indígena que grega. Quem estuda História sabe o quanto, apesar dos esforços das elites brasileiras para apagar nossa herança cultural africana e indígena, a resistência de nossos ancestrais foi firme o suficiente para sobreviver ao tempo, a dor, ao silenciamento e a tentativa de apagamento do qual a obra de Monteiro Lobato faz parte. A Grécia está em nós não por ser sublime ou melhor que tudo no mundo, mas por um processo de muita violência contra outras formas de ver, ser e estar no mundo.

A Cultura Grega não é a maior cultura do mundo e, no entanto, isso não a torna desinteressante. Eu amo estudar a Antiguidade Grega e não deixei, por incrível que pareça, de aproveitar o mergulho dos personagens do Sítio do Picapau Amarelo na Atenas de Péricles, político grego de enorme renome, responsável por financiar os artistas que construíram o Partenon, famoso templo dedicado a Palas Atenas.

São muitos diálogos nos quais somos apresentados à Arte Clássica, aos detalhes do surgimento da Grécia e seus povos, ao Teatro Grego, aos grandes escultores, aos grandes dramaturgos gregos. É uma narrativa muito eurocêntrica e carregada de preconceito em relação às culturas do Oriente Médio, do sul da África e do Oriente Médio, nem o Império Bizantino, pedaço sobrevivente do Império Romano escapou, coitado foi caracterizado como bárbaro (pág. 46). Mas, apesar das ressalvas, a leitura não deixa de ser uma experiência muito informativa e traz vários dados históricos que mesmo eu, Professora e Estudante conscienciosa de História , desconhecia ou não tinha tão organizadamente esquematizado em minha cabeça.
 

A propósito, quando começamos a estudar História uma das primeiras coisas que aprendemos é o quanto a Escrita da História é resultado de um constante diálogo entre o presente e o passado e muitas vezes reflete bem mais as características do tempo no qual foi escrita do que as características do passado em si e isso a gente vê muito em "O Minotauro". Tem uma passagem ótima quando Dona Benta conversa com os gregos sobre arte exaltando o humanismo grego em detrimento da arte moderna que mostra não como os gregos interpretariam a Arte Moderna caso estivessem diante dela, mas sim como o Lobato interpretava essa arte.
"... o futuro será motejado, e esta beleza será substituída por outra, isto é, pelo horrendo grotesco que para os meus modernos constituirá a última palavra da beleza. Com prova do que estou dizendo vou mostrar um papel que por acaso tenho aqui na bolsa - e Dona Benta, tirou da bolsa uma página de "arte moderna", onde havia a reprodução dumas esculturas e pinturas cubistas e futuristas. 
Péricles olhou para aquilo com espanto e mostrou-o a Fídias. 
- Mas é simplesmente grotesco, minha senhora! - disse depois. - Estas esculturam lembram-me obras rudimentares dos bárbaros da Ásia e das regiões núbias abaixo do Egito..." (pág. 59)

Enquanto Dona Benta debate História, Arte e Política na Atenas de Péricles, Pedrinho, Emília e o Visconde vão atrás de Tia Nastácia foi sequestrada e continua perdida. Narizinho não vai a lugar nenhum, ela fica com a Avó. Quando as crianças acalmam um pouco seu encantamento por estarem em um ambiente novo e voltam-se para o objetivo primordial de sua busca é também quando a gente se depara com falas absolutamente pesadas sobre Tia Nastácia que me deixam completamente absurdada com a insensibilidade de quem ainda defende Monteiro Lobato como um autor para crianças.
"- De que jeito tem essa criatura? - perguntou o pastor. 
- Uma beiçuda - respondeu Emília - com reumatismo na perna esquerda, nó na tripa, analfabeta, mil receitas de doces na cabeça, pé chato, gengiva cor de tomate, assassina de frangos, patos e perus, boleira aqui da pontinha, pipoqueira, cocadeira...
[...] 
- Uma negra pitadeira de um pito muito preto e fedorento... Não viu uma velha cor de carvão, de lenço vermelho de ramagens na cabeça e um par de beiços desde tamanho na boca? Se viu é ela." (pág. 107)
Aliás, ao longo de todo o livro é muito frisado o quanto o afeto a Nastácia se deve e muito ao seu trabalho como cozinheira. As crianças sentem falta dela não como indivíduo, mas sim como trabalhadora. Eu fico pasma como normalizam uma mulher idosa de 70 anos trabalhando intensamente como Tia Nastácia trabalha e de forma não remunerada, pois já em "Reinações de Narizinho" Monteiro Lobato informa que ela é "uma negra de estimação". Todo e qualquer livro do Sítio do Picapau Amarelo devia vir com um alerta de gatilho sobre RACISMO uma nota introdutória alertando as pessoas leitoras, notas de rodapé explicativas. A edição da Editora Globinho não tem nada disso.


E seguindo para a conclusão desse texto, enquanto as crianças viviam suas aventuras, a Tia Nastácia estava presa no Labirinto do Minotauro, que pouco ou nada aparece na história, fazendo bolinhos para ele. Quando as crianças a encontram ela tem uma fala que é um verdadeiro monólogo dos mais comoventes que li sobre como as mulheres pobres negras e pardas se envolvem com as crianças as quais passam a vida cuidando das cozinhas de sinhá da vida.
"Tive a ideia de fazer uns bolinhos, só para matar as saudades. Me lembrei de todos lá do sítio e disse comigo: 'vou fazer pela última vez o que eles gostavam tanto' [...] Fiz os bolinhos só por fazer, só pra me lembrar da minha gente lá do sítio... [...] eu ia frigindo os bolinhos e botando numa peneira. E dizia: 'Este é pra Narizinho, este pra Emília, este é pra Pedrinho, este pro Visconde, este é pro Quindim, este é pro Conselheiro...'. (pág. 238-239)
É muita solidão! Uma mulher idosa sem família consanguínea nenhuma, chamando de sua gente pessoas para as quais ela trabalha sem perspectiva de descanso. Quando ela diz: "- Pois é, foi o bolinho que me salvou. Nunca pensei...", pois o monstro passou a se alimentar dos bolinhos dela, Emília responde prontamente:
"Sim, você está salva, Tia Nastácia, e vai voltar para o Picapau, e vai continuar por toda a vida a fazer bolinhos para nós. Vê como é bom saber fazer uma coisa bem-feita?" (pág. 239).

Inclusive o livro termina com Nastácia cozinhando para todos os gregos famosos do mundo da escultura, do teatro e da política na casa de Péricles onde Dona Benta se hospedou enquanto estava em Atenas. A pessoa é sequestrada, passa dias cozinhando para um monstro dentro de um labirinto e ao ser libertada o povo já joga ela de novo na cozinha. Aliás, a últimas das prioridades de todos os personagens ao longo de todo o livro foi buscar a boa idosa.

Por fim, se na infância eu não gostava de Emília, hoje em dia detesto. É a personagem que fala as piores atrocidades, me identifiquei muito com Narizinho quando ela teve vontade de jogar a boneca aos tubarões (pág. 23).

4 comentários:

  1. eu adorava o sítio do picapau amarelo e esse era bem famoso. reprisou recentemente no viva. beijos, pedrita

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  2. Uau! Que post maravilhoso! Que aula! E pontuou coisas tão importantes. Li com gosto seu texto. Estou vindo também desejar um lindo ano e avisar que fiquei feliz ao saber que leu meu "Flor do Sol", que delícia de surpresa. E amei saber que curtiu o romance de Thalita e Jonas, obrigada por me contar e que bom que te fez bem.
    Beijo, beijo.

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  3. Olá, tudo bem? Sempre frequentei a biblioteca infantojuvenil Monteiro Lobato. Perto de casa. Aproveito a oportunidade para desejar um ótimo 2024. Bjs, Fabio www.blogfabiotv.blogspot.com.br

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  4. Jaci, que bela e triste, profunda e necessária postagem. Lamentável a editora não trazer esse alerta sobre racismo. Acho que durante muito tempo não se enxergou esse racismo em Monteiro Lobato e lembro-me quando veio à tona, acho que na época da pandemia, todo esse debate se deveria cancelar ou não o autor. Pessoalmente acho que não se deveria cancelar e sim alertar e mostrar por quanto tempo erramos como sociedade; os livros deveriam vir com esse alerta e notas explicativas; deveria ser um livro a ser lido do maneira do " como não se deve fazer". E agora também fica uma questão: semana passada passei em frente à biblioteca da minha cidade que leva o nome do referido escritor. Dar um nome a uma biblioteca é uma homenagem. Seres racistas não são dignos de homenagem.
    Obrigada pela lucidez de seu texto.
    Beijos, ana paula

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