quinta-feira, 13 de outubro de 2022

"As relações Perigosas" de Chordelos de Laclos

Por esses dias estive folheando meu volume de "Caro Michele" da Natalia Ginzburg, livro no qual a narrativa foi estruturada oscilando entre a terceira pessoa e várias cartas com as quais os personagens se comunicam entre si. Sou absolutamente apaixonada pela família do Michele, apesar dele ser um personagem meio sumido, pelo próprio Michele e pela intimidade promovida por um livro cuja história se conta através da correspondência dos personagens. Dentro do sentimento de prazer de ler um romance epistolar, "As Relações Perigosas" de Choderlos de Laclos pulou em minha mão e saiu da pilha dos livros a serem lidos.

Por está diante de um clássico, já esperava do texto do Choderlos de Laclos algo robusto, mas confesso que o romance me surpreendeu TOTALMENTE. Esse livro não só é robusto como é absurdamente sórdido, bem pensado e bem executado. Ele é absolutamente lúdico, me interessei pelos personagens, me peguei devorando as cartas com um furor febril, dei risadinhas diante de situações pitorescas, senti a tensão aumentando quando passeia a admirar certos personagens, lamentei situações e vivi intensamente cada cada carta seja ela tediosa, inocente de da pena, sórdida, atroz, cruel, cínica, perversa, trágica, covarde, audaz ou tola.

Ler "As relações perigosas" é uma experiência tão imersiva que não surpreende o fato dele ter sido um absoluto sucesso editorial, reeditado várias vezes. O livro figurava na biblioteca da própria Rainha Maria Antonieta e muitas pessoas acreditavam ser o seu conteúdo verídico. O próprio Laclos cria esse sentimento de estarmos entre os segredos de alcova de pessoas reais ao se colocar como mero redator, distribuir notas de rodapé pelo livro inteiro e completar a coisa toda com dois textos introdutórios, a saber uma "Advertência do Editor" e um "Prefácio do Redator".


Tem algo que nos convide mais a crer na veracidade dos fatos narrados em um livro do que uma advertência começando com: "Julgamos de nosso dever prevenir o público de que, apesar do título dessa obra e do que dela diz o redator em seu prefácio, não garantimos a autenticidade da coletânea..."? Nada é tão confissão de culpa quanto a falta de garantias da autenticidade da coisa, "não negamos, nem afirmamos, tirem suas próprias conclusões". Mas, no tocante a reafirmar a veracidade das cartas negando a veracidade das cartas, nada supera a ironia com a qual nessa advertência é abordado o século XVIII francês:
"Demais, acreditamos que o autor, embora pareça haver procurado a verossimilhança, tenha-a destruído ele próprio, estouvadamente, pela época em que situou os acontecimentos a que deu publicidade. Efetivamente, muitas das personagens que personagens que pôs em cena tem tão maus costumes que é impossível supor que hajam vivido em nosso século, neste século de filosofia, em que as luzes, por toda parte espalhadas, tornaram, como todos sabem, tão honestos os homens e as mulheres tão modestas e reservadas." (pág. 11).

Ora, "As Relações Perigosas" é parte de uma ambiência cultural e social de crítica e desmoralização da nobreza francesa. Na França do século XVIII foi cada vez mais se tornando público e notório o quanto absurdo é um grupo de pessoas nada distinto se intitularem nobres, desfrutarem de privilégios e viverem uma vida de prevaricação. Esse livro epistolar animou esse ambiente cultural que desfez a ideia de sacralidade da realeza e da nobreza de forma torrida. Pense no livro quente onde os afetos são frios e as pessoas ou são ardilosas ou são vítimas de ardis.

Como já falei um monte sobre meus sentimentos sobre a genialidade dessa obra, cabe falar sobre os personagens. Aqui acompanhamos a correspondência entre dois grupos de pessoas. O primeiro é o composto por Cécile Volanges, uma jovem recém tirada do Convento das Ursulinas para se casar; a Marquesa de Merteuil, viúva e prima da mãe de Célile; Cavaleiro Danceny, um jovem de renome e sem fortuna castamente apaixonado pela pequena Volanges; e a Sra. de Volanges, mãe da jovem Sophie. O segundo grupo é formado pelo Visconde de Valmont, um homem atroz, ex-amante e amigo amicíssimo da Marquesa de Merteuil; a Presidenta de Tourvel, uma mulher casta, recém casada em férias na casa da tia idosa de Valmont; a Sra. de Rosemonde, mulher idosa, tia de Valmont.

Nos dois grupos temos as ovelhas, os lobos e as raposas sobreviventes. Começamos a conhecer todos através da Cécile, autora da primeira carta, mas quem esquenta a narrativa e a torna envolvente são a Marquesa de Merteuil e o Visconde de Valmont, os lobos. Merteuil, por vaidade e vingança contra o futuro marido de Cécile, deseja perverter a garota conduzindo a queda moral; Volanges, por vaidade e luxúria, pretende possuir a Presidenta de Tourvel. Ambos, são frios, premeditados, conhecem muito bem a arte da sedução e não tem misericórdia ou pudor de usar os ardis mais perversos. A Marquesa e o Visconde são tão vis que muitas vezes me senti viu também por não conseguir para de acompanhar a troca de cartas entre os dois.

Fica claro o quanto os lobos são ajudados em sua sanha contra Cécile e a Presidenta de Tourvel, pela inocência de ambas. Criadas em um convento, do qual só saíram para casar, as duas são presas quase fáceis demais, ovelhas de pelo branquinho prontas para serem devoradas. No desenvolvimento da história dessas duas personagens senti uma forte crítica a educação limitada das mulheres brancas europeias, não me surpreendi quando descobri no Choderlos um defensor dos direitos das mulheres e da educação feminina. Aliás, fica implícito que mesmo a Sra. de Rosemonde e a Sra. de Volanges não passaram imunes pelos dissabores da juventude, elas apenas não passaram de ovelhas a lobas, se tornando raposas prevenidas, mas não capazes de livrar suas frágeis tuteladas das maquinações dos lobos em sua volta.

As cartas entre Merteuil e Valmond, são as melhores dos livros. Apesar de ambos serem pessoas capazes de atrocidade, são muito charmosos. Como cúmplices, apesar de não precisarem desse artifício um para o outro, estão sempre se seduzindo mutuamente e acabam nos seduzindo também. São eles que vão nos levando a querer continuar consumindo essa grande fofoca da aristocracia francesa. São eles que vão conduzindo nosso olhar para a compreensão de quão atroz é essa classe social charmosa, mas também ociosa, sórdida, cheia de privilégios imerecidos. Se fosse eu contemporânea da Revolução Francesa não teria (como não tenho) pena nenhuma desses seres humanos tão vis.

Na capacidade de envolver e chamar atenção de uma forma tão lúdica para os males da nobreza, "As relações perigosas" se torna também didático. É um livro para ser lido sozinha em silêncio, é um livro para ser lido também em voz alta em um salão cheio de gente. É um livro que diverte e instrui. O século é o XXI e eu adoraria um produto cultural com esse magnetismo e energia capaz de colocar em evidência a vileza de alguns personagens da política brasileira. Acredito mesmo estarmos necessitados como brasileiros de uma Revolução para chamarmos de nossa.

"As Relações Perigosas" é um livro bem desenvolvido e viciante como só uma boa fofoca sabe ser. É redondo, mas não se esgota em uma só leitura. A minha edição é da Abril Cultural, foi publicada em 1971 pela série "Os Imortais da Literatura Universal". Ela tem alguns problemas de fruição, no final peguei o ebook da edição da Penguin e achei de mais fácil leitura e fiquei com vontade de reler tudo imediatamente.

Quanto ao destino dos personagens, é tudo muito atroz e imerecido. Só cheguei a odiar mesmo o Visconde de Valmont, esse é um dos piores boy lixo já criados na História da Literatura. Nojo! A guilhotina é pouco para tais criaturas. A Marquesa de Merteuil é uma das personagens femininas mais incríveis da literatura, complexa, autoconsciente, sagaz, ela é obra de si mesma, de seu estudo individual do mundo, de sua busca por conhecimento, lazer e liberdade, tudo que ela faz secretamente os homens fazem em público sendo injusto julgá-la por isso. Na minha fanfic ela enganou todo mundo e no final foi viver bem na Suíça. A Presidenta de Tourvel também merece menção honrosa, uma das personagens mais dignas da literatura, fiel a si mesma, grandiosa, apaixonada, perfeita.

2 comentários:

  1. Que bela resenha aqui fizeste e como é bom quando livros nos surpreendem positivamente, mostrando mais do que imaginávamos! beijos, tudo de bom,chica

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  2. eu amo esse livro, eu tenho de outra edição, que foi vendida em bancas. e as adaptações da obra são ótimas também. sim, tb não queria parar de ler. beijos, pedrita

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