"Demais, acreditamos que o autor, embora pareça haver procurado a verossimilhança, tenha-a destruído ele próprio, estouvadamente, pela época em que situou os acontecimentos a que deu publicidade. Efetivamente, muitas das personagens que personagens que pôs em cena tem tão maus costumes que é impossível supor que hajam vivido em nosso século, neste século de filosofia, em que as luzes, por toda parte espalhadas, tornaram, como todos sabem, tão honestos os homens e as mulheres tão modestas e reservadas." (pág. 11).
Ora, "As Relações Perigosas" é parte de uma ambiência cultural e social de crítica e desmoralização da nobreza francesa. Na França do século XVIII foi cada vez mais se tornando público e notório o quanto absurdo é um grupo de pessoas nada distinto se intitularem nobres, desfrutarem de privilégios e viverem uma vida de prevaricação. Esse livro epistolar animou esse ambiente cultural que desfez a ideia de sacralidade da realeza e da nobreza de forma torrida. Pense no livro quente onde os afetos são frios e as pessoas ou são ardilosas ou são vítimas de ardis.
Como já falei um monte sobre meus sentimentos sobre a genialidade dessa obra, cabe falar sobre os personagens. Aqui acompanhamos a correspondência entre dois grupos de pessoas. O primeiro é o composto por Cécile Volanges, uma jovem recém tirada do Convento das Ursulinas para se casar; a Marquesa de Merteuil, viúva e prima da mãe de Célile; Cavaleiro Danceny, um jovem de renome e sem fortuna castamente apaixonado pela pequena Volanges; e a Sra. de Volanges, mãe da jovem Sophie. O segundo grupo é formado pelo Visconde de Valmont, um homem atroz, ex-amante e amigo amicíssimo da Marquesa de Merteuil; a Presidenta de Tourvel, uma mulher casta, recém casada em férias na casa da tia idosa de Valmont; a Sra. de Rosemonde, mulher idosa, tia de Valmont.
Nos dois grupos temos as ovelhas, os lobos e as raposas sobreviventes. Começamos a conhecer todos através da Cécile, autora da primeira carta, mas quem esquenta a narrativa e a torna envolvente são a Marquesa de Merteuil e o Visconde de Valmont, os lobos. Merteuil, por vaidade e vingança contra o futuro marido de Cécile, deseja perverter a garota conduzindo a queda moral; Volanges, por vaidade e luxúria, pretende possuir a Presidenta de Tourvel. Ambos, são frios, premeditados, conhecem muito bem a arte da sedução e não tem misericórdia ou pudor de usar os ardis mais perversos. A Marquesa e o Visconde são tão vis que muitas vezes me senti viu também por não conseguir para de acompanhar a troca de cartas entre os dois.
Fica claro o quanto os lobos são ajudados em sua sanha contra Cécile e a Presidenta de Tourvel, pela inocência de ambas. Criadas em um convento, do qual só saíram para casar, as duas são presas quase fáceis demais, ovelhas de pelo branquinho prontas para serem devoradas. No desenvolvimento da história dessas duas personagens senti uma forte crítica a educação limitada das mulheres brancas europeias, não me surpreendi quando descobri no Choderlos um defensor dos direitos das mulheres e da educação feminina. Aliás, fica implícito que mesmo a Sra. de Rosemonde e a Sra. de Volanges não passaram imunes pelos dissabores da juventude, elas apenas não passaram de ovelhas a lobas, se tornando raposas prevenidas, mas não capazes de livrar suas frágeis tuteladas das maquinações dos lobos em sua volta.
As cartas entre Merteuil e Valmond, são as melhores dos livros. Apesar de ambos serem pessoas capazes de atrocidade, são muito charmosos. Como cúmplices, apesar de não precisarem desse artifício um para o outro, estão sempre se seduzindo mutuamente e acabam nos seduzindo também. São eles que vão nos levando a querer continuar consumindo essa grande fofoca da aristocracia francesa. São eles que vão conduzindo nosso olhar para a compreensão de quão atroz é essa classe social charmosa, mas também ociosa, sórdida, cheia de privilégios imerecidos. Se fosse eu contemporânea da Revolução Francesa não teria (como não tenho) pena nenhuma desses seres humanos tão vis.
Na capacidade de envolver e chamar atenção de uma forma tão lúdica para os males da nobreza, "As relações perigosas" se torna também didático. É um livro para ser lido sozinha em silêncio, é um livro para ser lido também em voz alta em um salão cheio de gente. É um livro que diverte e instrui. O século é o XXI e eu adoraria um produto cultural com esse magnetismo e energia capaz de colocar em evidência a vileza de alguns personagens da política brasileira. Acredito mesmo estarmos necessitados como brasileiros de uma Revolução para chamarmos de nossa.
"As Relações Perigosas" é um livro bem desenvolvido e viciante como só uma boa fofoca sabe ser. É redondo, mas não se esgota em uma só leitura. A minha edição é da Abril Cultural, foi publicada em 1971 pela série "Os Imortais da Literatura Universal". Ela tem alguns problemas de fruição, no final peguei o ebook da edição da Penguin e achei de mais fácil leitura e fiquei com vontade de reler tudo imediatamente.
Quanto ao destino dos personagens, é tudo muito atroz e imerecido. Só cheguei a odiar mesmo o Visconde de Valmont, esse é um dos piores boy lixo já criados na História da Literatura. Nojo! A guilhotina é pouco para tais criaturas. A Marquesa de Merteuil é uma das personagens femininas mais incríveis da literatura, complexa, autoconsciente, sagaz, ela é obra de si mesma, de seu estudo individual do mundo, de sua busca por conhecimento, lazer e liberdade, tudo que ela faz secretamente os homens fazem em público sendo injusto julgá-la por isso. Na minha fanfic ela enganou todo mundo e no final foi viver bem na Suíça. A Presidenta de Tourvel também merece menção honrosa, uma das personagens mais dignas da literatura, fiel a si mesma, grandiosa, apaixonada, perfeita.
Que bela resenha aqui fizeste e como é bom quando livros nos surpreendem positivamente, mostrando mais do que imaginávamos! beijos, tudo de bom,chica
ResponderExcluireu amo esse livro, eu tenho de outra edição, que foi vendida em bancas. e as adaptações da obra são ótimas também. sim, tb não queria parar de ler. beijos, pedrita
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