A narrativa da Han Kang é espetacular.
Não tem outra forma de começar qualquer texto sobre o livro "A Vegetariana" da coreana Han Kang senão afirmando categoricamente: "A narrativa da Han Kang é espetacular". Esse é um livro onde forma e conteúdo são equilibrados primorosamente. É um livro tanto capaz de envolver a pessoa leitora de forma lúdica quanto mostrar a forma atroz com a qual o machismo sobrecarrega as mulheres física e emocionalmente conduzindo-as a um estado cotidiano de nulidade de sua vontade, a própria morte em vida.
No livro encontramos a história de Yeonghye, uma pessoa inteiramente dentro do padrão de normalidade da classe média coreana, jovem, casada com um homem padrão, filha obediente de uma família padrão, irmã mais nova de um trio formado por duas mulheres e uma homem, fazedora de todos os seus papeis de gênero atribuídos a sua condição de mulher no mundo até o dia no qual ela acordou de um pesadelo e decidiu para de comer ou cozinhar carne.
É impressionante como a simples decisão da Yeonghye de administrar sua própria alimentação de forma independente e divergente do padrão da sua família causa uma ruptura na ordem da sua vida domestica e posteriormente na ordenação de toda sua família conduzindo todo mundo a beira do caos. A história é ordenada em três atos ou três partes nas quais o narrativa se reveza entre o marido, o cunhado e a irmã da protagonista mostrando lados diferentes da história em andamento.
Na primeira acompanhamos a perspectiva do marido da Yeonghye, responsável por nos apresentar a vida cotidiana do casal e os meandros da sua vida domestica corriqueira na qual sua esposa existe como um ser robótico capaz de cozinhar, limpar, transar e até ajudar nas despesas. Uma vida devastadoramente corriqueira onde a mulher simplesmente cumpri os papeis socialmente determinados a ela até não mais cumprir e assim incomodar seu marido e seus parentes. É primorosa a forma como essa primeira parte do livro é completa em si, um conto de terror e suspense no qual a narrativa do marido é quebrada apenas pelas descrições dos sonhos perturbadores da esposa colocando em evidencia a estrutura social exaustiva e asfixiante que suga a liberdade de uma mulher até o ponto de não lhe permitir dizer a palavra NÃO.
Na segunda parte some completamente a voz do marido e começamos a acompanhar a voz do cunhado da Yeonghye e na terceira parte vemos a irmão mais velha dela e aqui ouso não contar muito a respeito pois tiraria um muito da surpresa e impacto da leitura. Certamente o livro terminaria de forma brilhante se a autora encerrasse sua tragédia no primeiro ato e a primeira parte é tão impactante que escrever mais duas foi uma ousadia da autora. Com essas partes ela poderia ter acabado com o livro dela, mas a genialidade da Han Kang não é para ser subestimada e o acréscimo desses dos atos tornou o livro ainda mais genial.
A leitura da primeira parte isoladamente poderia fazer parecer que o radical ato de rebeldia da protagonista foi a pedra responsável por da inicio a uma avalanche trágica na história dessa família o que seria um grande engano, pois esse ato foi penas a dota d'água a transbordar o copo cheio de violências e silenciamentos torturantes.
Com exceção da narrativa de seus sonhos, ao longo do livro nós poucos ouvimos a voz da protagonista, mas quando a narrativa passa para Inhye, irmã mais velha da Yeonghye, começamos a ter uma visão macro de toda a história e é aquele momento no qual toda mulher originaria de uma família assombrosamente patriarcal, numa sociedade violentamente machista como a nossa, entende o quanto todas nós estamos a um passo da loucura ou do caos ou da tragédia ou tudo junto. A Han Kang fala sobre a sociedade coreana, mas parafraseando o cineasta Bong Joon-Ho responsável pelo filme "Parasita": "Aparentemente todas nós vivemos no mesmo país chamado patriarcado.".
Nesse sistema opressivo o que nos salva cotidianamente do caos, da loucura, da tragédia ou de tudo junto é nossa rebeldia, nossa luta pela manutenção de nossas particularidades, prazeres e divergências. Quando a liberdade de ser, o controle de suas vontade, no limite o controle do próprio corpo nos é negado estrutural fica difícil manter a sanidade e conter uma precipitação no caos e é isso que é narrado em "A Vegetariana", uma estrutura que nos nega a possibilidade de exercer nossa liberdade de ser nos tira até a vontade de viver como um ser humano, faz perder inclusive o sentido de ser humano no mundo, é melhor virar uma árvore.
E há muito a ser dito sobre o patriarcado, o machismo, as opressões e as lutas das mulheres pelo direito de ser e estar no mundo com liberdade e uma coisa fabulosa como a Han Kang não é atropelada por essa enxurrada de necessidade de dizer. Ela conseguiu escrever um romance sobre tudo isso sem ser didática em nenhum ponto, fazendo da "Vegetariana" um livro livro de suspense, tensão com certa dose de fantástico. A narrativa é tão envolvente, a forma como as palavras se encadeiam em frases em frases e período tomando paginas inteiras faz com que a leitura flua sem a gente nem sentir. É um livro muito lúdico e envolvente feito para ser lido de uma vez só sem dificuldades.
E sim, o trabalho do Pedro Inoue para a capa brasileira desse livro foi PRIMOROSO. A capa dialoga perfeitamente com a história contada no livro foi muito satisfatório fechar o livro e entender a arte da capa.
não conhecia, anotado. beijos, pedrita
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