terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Longuíssimo Balanço Emocional


Tenho descoberto novas vozes alienígenas a cada novo dia enquanto observo as estrelas do céu noturno de Igarassu e converso com as plantas do Jardim do Meu Irmão e a mangueira do quintal vizinho. Escrevo grandes desabafos em meus cadernos escolares originalmente comprados para fichamentos de textos sobre Egito, Grécia, Primeira Guerra Mundial, Racismo, Antirracismo e todas as coisas com as quais se preenche 120 horas aulas em um ano letivo de turmas do 6º, 7°, 8° e 9º anos.

As vezes me sinto tão velha. Todas as pessoas nadando no mar da sua trigésima década de vida, com ou sem pandemia, se sentem assim? As vezes toda essa sensação de velhice e experiência de vida parecem meras ilusões de ótica, prepotência sobrevivente da adolescência que não nos abandona nos vinte anos e parece voltar a vida nos trinta. As vezes toda essa sensação de velhice e experiência de vida parecem direitos naturais das sobreviventes de suas próprias loucuras dos vinte anos.

Voltei a escrever como forma de catarse, faço enormes balanços emocionais com caneta esferográfica e paginas pautadas. Impossível contar as palavras escrevendo no papel, e no entanto, página após pagina, organizo na força e fragilidade de minha narrativa intima a desordem de trinta e quatro anos de vida. Escrevo como quem tira as palavras do fundo do meu coração, do canto mais profundo do meu interior, recapitulando a minha vida inteira.

Lembro de quando me senti caindo... caindo... caindo... caindo... dentro de um vazio. Era como se dentro de minha consciência houvesse um poço sem fundo e eu caia e caia dentro dele. Quando botava a cabeça no travesseiro meus primeiros sonhos noturnos eram vozes anunciando o fim dos tempos, a condenação, o dilúvio, a erosão de todos os morros visíveis da janela do quarto o termino de todas as coisas boas. Gritos vindos de além de qualquer lugar além do meu poder de visão, mas sempre ao alcance do meu ouvido.

Era terrível, nunca escrevi sobre isso em nenhum dos meus muitos diários. Tinha medo de transpor esses sentimentos e sonhos para as paginas do diários, tornar essas sensações acessíveis ao mundo. Os nossos sentimentos e sonhos só Deus sabe, nossas palavras ditas e escritas não. Então eu não dizia e nem escrevia.

Na adolescência voltei a frequentar a igreja com mais frequência para combater esses sentimentos e sonhos. Fé e a companhia de outras pessoas foi meu artifício para tentar para de cai. Foi uma fase de escaladas para fora do fundo do poço... Escalar... Escalar e escalar... Subir... Subir... Subir... Respirar um ar não viciado, um ar banhado em sol e calor. Apesar das restrições e de ser bastante castrativa, de muitas formas, gostei da vida de adolescente de igreja evangélica neopentecostal.

Gostei de ser professora da Escola Dominical. Das minhas alunas. Das amigas e amigos. Das manhãs de domingo. De Felismino sempre nos recebendo com um sorriso sentado na mesinha da secretária da Escola Dominical. Da comunidade e seus dilemas. Da constância dos sorrisos sobre tudo e nada naquelas meninas entre onze e quatorze. Gostei de ter ser amiga de Fábio durante a maior parte daquele tempo. No fundo da igreja ficava a sala das moças, a esquerda as senhoras, a direita os rapazes e os senhores, a sala das adolescentes ficava no centro, bem próxima ao púlpito da igreja. Minhas manhãs luminosas de domingo, hoje envolvidas em névoa, como se a soma de todas as manhãs de domingo acumuladas ao longo de dez anos de docência somassem apenas uma manhã.

Havia também a universidade, minhas aulas foram quase sempre noturnas, mas todo esse período parece sempre tão luminoso, não se deve ignorar os poderes das luzes fluorescentes das universidade federais. Viajei bastante durante minha vida de universitária, todos os Encontros Nacionais e Regionais possíveis e imagináveis contaram com minha presença. Fiz e ofereci minicursos e oficinas, apresentei artigos e trabalhos, falei e ouvi, conheci pessoas e caminhei por cidades jovens e antigas, altas e baixas. Fui leve, burra, chata, impaciente, boa e má companhia. Com toda sinceridade do meu ser, tenho até medo de como Gustavo, minha companhia mais constante dessas aventuras, rememora esses eventos.

Parei de frequentar a igreja com constância e disciplina na época do mestrado. Felismino fez e faz muita falta a todas nós, ele fez sua passagem para o outro lado da vida, nosso grupo desagregou e eu desagreguei da igreja, parti e até hoje não voltei mais. O período do mestrado foi tão tenso, o pós-mestrado me deixou com um intenso sentimento de vazio.

Entre 2014 e 2017 todas as pessoas com quais convivi me ouviram dizer: "Estou me sentindo tão vazia!", "Estou me sentindo vazia!". Eu bloguei muito nesses anos, li muitos livros, trabalhei bastante. Na escola e na creche, turmas de 6º, 7º e 8º anos nas manhãs lecionando História, Ética e Geografia, uma turma de Educação Infantil nas tardes e blogs. Entrei de cabeça na blogosfera literária ajudando quem achei poder ajudar. Uma frase dessa época: "Quem ajuda não faz!". Acho real essa ideia, quem ajuda não faz, mas quem ajuda abre mão de fazer algo por si para fazer por alguém e talvez esse tipo de desprendimento tenha algum valor.

Ainda não superei a intensa tristeza gerada pela partida de Renato. Foi tão repentino. Um dia tínhamos todos e todas um estilo de vida e no outro... estava deixando o corpo amado de Renato no Cemitério de Casa Amarela. Meu irmão, o irmão do meu coração, uma das melhores pessoas da minha vida, o sorriso mais sonoro, meu coração irremediavelmente partido. Para mim foi um Fim de Mundo, Apocalipse, Ragnarök, cada cultura chama essa ruptura com uma ordem até então inabalável de uma forma diferente.

Para mim a vida pós-2016 é toda pós-apocalíptica, os desastres do mundo, as falências, o vírus, os antivacina, a constância do fascismo nada me surpreende, embora tudo me deixe profundamente abatida. Creio ser assim para todas as pessoas decentes do mundo. Não da para ser decente e se sentir bem dentro da realidade na qual vivemos.

Algumas amizades não sobreviveram a meu Fim de Mundo particular. Por um motivo ou outros rupturas aconteceram. Vez ou outra me pego pensando nessas rupturas, lembro do filme "Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças" e dou risada de mim para comigo. Outras amizades sobreviveram e outras ainda se fortaleceram.

Durante os primeiros anos da minha vida como ser consciente tinha muito medo de perder algum dos meus irmãos consanguíneos e de coração. As vezes penso se o medo não é algo anunciando aquilo previamente destinado a acontecer, se o medo é uma espécie de pressentimento. Tento não ter medo de mais nada. Sinto pontadas de dor no coração, choro ouvindo músicas cantadas em um idioma quase alienígena, as vezes faço até planos para preencher o espaço entre os trinta e quatro e quarenta anos e não acredito no amanhã. Continuo vivendo na constância do agora, essa tempestade de agoras se transforma em ontens, todos os nossos ontens formando o agora, o futuro sempre indefinido.

Em Agosto todas as coisas acabam de morrer na minha vida. Agosto é sempre um fim de ciclo e um recomeço. Jaqueline morreu em Agosto de 1985, nasci em maio de 1986. Todo mês de agosto em algum momento me sinto enterrando a irmã não conhecida por mim e esperando os irmãos chegarem nos setembros e novembros da vida.

Conferi as partes do meu corpo me despedindo de Agosto e não me sinto mais tão vazia. Me sinto triste, mas não vazia.

Talvez tenham sidos os livros, li livros suficientes para somarem centenas, alguns parecem ter sido lidos em outra vida por outra pessoa. Talvez tenha sido meus e minhas estudantes. Adolescentes e Crianças preciosas, maravilhosas como uma terra prometida manando leite e mel, uma terra onde tem ouro do bom, com visão além do alcance, problematizadoras e geniais com as quais longas conversas se tornam muito curtas e horas parecem minutos.

Entre 2014 e 2019 de muitas formas foram essas e esses estudantes parte do que me preencheu. Elas e eles plantaram sementes em mim e regaram e aqueceram e iluminaram e não botei virgulas nessa frase com o intuito de passar a ideia de conexão entre uma coisa e outra.


Observo muito as árvores dos quintais vizinhos, as vezes me pergunto se para elas é tortuoso crescer, enverdecer, enrijecer o caule, aprofundar as raízes e fazer fotossíntese. Lembro de Tia Rita, minha professora da terceira série escrevendo no quadro verde com giz branco, em uma tarde ensolarada de 1995, a palavra FOTOSSÍNTESE. Na a vida das plantas me pareceu espetacularmente simples, atualmente me pergunto se realmente é tão fácil assim.

Observo a mangueira do quintal vizinho florescendo em um processo paciente e constante, uma obstinada construção diária independente com o sol, a lua, a chuva, o calor e o vento. Tenho essa mangueira por amiga e confidente, as vezes penso se ela não quer me dizer alguma coisa, tento entender o que ela me diz, não sei se chego lá.

Olhando para ela sempre penso na existência como um esforço diário. Observo como todos os dias ela se transforma e avança em seus processos internos sem se mover do lugar no qual ela foi plantada. A árvore é constante, segue fornecendo sombra, alento e na época certa virão os frutos. Olho muito para ela nesses momentos nos quais sinto falta de todas as pessoas com as quais eu costumava estar, falar, ouvir, trabalhar, andar e sinto um estranho conforto.

A madrugada avançou enquanto eu escrevia, Lion vigia a porta como se houvesse um mal lá fora e ele estivesse impedindo-o de entrar, ainda sinto um estranhamento diante da fidelidade felina, já é dia 31 de agosto de 2020.

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P.S.: O texto é de 31 de Agosto, mas primeira foto dele é mais recente, tem pouco mais de uma semana. Tenho plena consciência deste ser um texto longo demais e inadequado para qualquer plataforma virtual da atualidade, mas realmente precisava deixar ele aqui.

5 comentários:

  1. Pandora, não achei nada de tolo como rotulaste..São devaneios, desabafos do teu sentir e vida. Achei lindo e faz mesmo muito bem não deixar guardado.Todos temos perdas e só as lembranças delas já nos tiram do prumo... Colocar pra fora ajuda a até nos fazer entender a nós mesmas... Adorei te ler e também as belas fotos! beijos, tudo de bom,chica

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  2. esses tempos são tão difíceis. são muitas sensações. se cuide. beijos, pedrita
    http://mataharie007.blogspot.com/

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  3. Oi Jacilene acredito que essa emoção, de se sentir mais velha, seja algo que a maioria das pessoas passem, talvez sejam cobranças do nosso inconsciente, do tipo, estou perdendo tempo com algo que não me faz feliz, estou ficando velha e talvez não tenha oportunidade de ser feliz.
    Quanto a mangueira amiga, eu acho que você deve observa-la com mais atenção, porque Deus vai falar com você através dessa observação, veja o caso de Jonas (na bíblia), quando Deus fez nascer uma planta para protege-lo do sol, mas essa planta serviu para Deus ensina-lo, exorta-lo; Deus não nos abandona, nos é que nos escondemos dele, assim como Adão fez depois que desobedeceu Ele e o próprio Jonas tentou fazer.
    Amei ler você, obrigada por sua presença lá no Tacho.
    Beijos, Vi

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  4. Quanta emoção nesta divagação maravilhosa, textos assim jamais serão longos ou cansativos.
    A relação entre o vivido, o que vivemos e a crença em um futuro sempre poderá nos trazer um pouco de ansiedade, mas temos que estar atentos para ela não não nos engolir. A cada passo mais aprendemos de nós mesmo, dos que nos cercam e do mundo.
    Jaci, vc já leu os filmes do Studio Ghibli? Se não assisti, recomendo, é muito bom! Lendo seu texto lembrei de um: Memórias de ontem. São belíssimos,delicados, profundos, cheios de mensagens, uma viagem no interior de nossa mente, nossos questionamentos...
    AS fotos são lindas, parabéns pelo escrita, poucos conseguem transcrever para o papel/tela as emoções que carregam.
    Abração!

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  5. Voltei pra avisar que acaba de entrar teu céu por lá! Obrigadão! Lindo fds! beijos, chica
    Podes ver aqui:
    http://ceuepalavras.blogspot.com/2021/01/blog-post_30.html

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