"O Perfuraneve" foi um livro cujo lançamento me deixou instigada. Não cheguei a ver o filme, mas li várias resenhas dele e acabei adicionando a coleção. No entanto, quando ele chegou nas minhas mãos não senti impeto de ler automaticamente. Acabei deixando ele na estante esperando sua hora e sua vez.
Só quando passei a frequentar o metro do Recife ele começou a me chamar e, apesar dos seus um quilo e meio, não consegui resisti por muito tempo ao chamado. Numa bela manhã levei ele comigo para percorrer a distancia capaz de unir e separar a Zona Norte do Recife do Centro de Jaboatão. Apesar do incomodo gerado pelo peso, ler um livro cuja história se passa dentro de um metro de superfície estando dentro desse meio de transporte formou um jogo de espelhos entre realidade e ficção impossível de resistir e difícil de reproduzir.
As trama "O Perfuraneve" se passa em um futuro no qual a humanidade conseguiu destruiu a diversidade climática do planeta mergulhando toda atmosfera em uma brutal nova Era do Gelo. Apenas sobreviveram a esse Ragnarok os seres capazes de conseguir um lugar no espaço privado de um trem de luxo projetado originalmente para promover turismo, o "Perfuraneve", o último bastião da humanidade, capaz de cruzar infindáveis vezes o deserto gelado no qual a Terra se transformou.
Uma vez dentro do confinamento do trem, os seres humanos logo tratam de reproduzir nosso estilo de vida ipsis litteris com direito a: hierarquias sociais, violência simbólica, agressividade, machismo, brutalidade, intolerância, fanatismo religioso, religião como forma de controle social, e muita, mais muita mesmo, desigualdade social.
Nem a população e nem os recursos conservados dentro do "Perfuraneve" são distribuídos de forma igualitária. No fundo ficam as pessoas menos privilégiadas, amontoadas como bichos, sofrendo todo tipo de privação. No meio a classe média, possuidora de certos recursos para subsistência, mas não muitos. Mais a frente fica a elite composta por religiosos, burocratas e militares vivendo do bom e do melhor.
Com a mediação da capacidade alienativa da religião e da possibilidade de exercer tirania da força militar, a experiencia claustrofóbica de viver dentro de um trem em constante estado de movimento transcorre de forma sustentável até o dia no qual um habitante do fundo, Proloff, escapa e a frágil hierarquia social é colocada em questão. A presença dele desperta medo nos donos do poder e alimenta a revolta de um grupo cioso de diminuir as desigualdades representado por Adeline Belleau. Logo Adeline e Prollof formam um casal e pelos olhos deles viajamos pelo trem expresso descobrindo como vivem as diversas pessoas nele abrigadas, quais são as estratégias usadas para garantir a sobrevivência dessa população e quão frágil a vida humana pode ser.
Os autores, Jacques Lob, Benjamin Legrand e Jean-Marc Rochette, construíram um material realmente admirável. O texto e a arte compõe um conjunto no qual a alienação religiosa e a tirania são questionados de forma muito conscienciosa sem perder a fluição do texto ou a beleza. O trabalho de encadernação e edição da Aleph é simplesmente primoroso. Além da história titulo ao HQ, a edição, contém mais duas histórias ambientadas nesse futuro congelado, "O explorador" e "A travessia" ampliam ainda mais a discussão inicial e aprofundam a nossa viagem a esse ambiente distópico.
Durante a leitura facilmente me vi puxada do caos do Metro Urbano do Recife para o do Perfuraneve. Sai do calor extremo dos trópicos para o frio congelante. Viajei com Proloff e Adeline vagão a vagão, descobrindo, absorvendo os xoques, pensando e questionando os pontos frágeis da ordem social na qual eles vivem e na qual eu vivo. Essa capacidade de sugar o leitor é o ponto forte do trabalho dos autores, mas também existem os pontos frágeis.
Jacques Lob, Benjamin Legrand e Jean-Marc Rochette reduziram a humanidade sobrevivente a Era do Gelo Moderna a majoritariamente homens brancos, não há diversidade étnica ou de gênero. Asiáticos, africanos, indígenas, pessoas do leste europeu foram praticamente banidos, a exceção de um personagem negro. As poucas mulheres da trama são retratadas como objetos sexuais, criaturas a serem salvas ou assassinadas para fornecer um tipo de motivação ao herói. Não existe mais de duas mulheres com nomes próprios, não há diálogos entre mulheres falando sobre suas vidas a bordo. A grande representação feminina é a própria locomotiva, mas essa é uma mãe acéfala, conduzindo na proteção do ventre seus filhos por um mundo desabitado e mortal. A ausência de crianças ainda é justificada, mas a de gays, lésbicas, travestis, trans... nenhuma palavra é falada sobre isso.
Produzido entre 1984 e o ano 2000 essa HQ entretêm e faz pensar, mas a mim é legal muito mais por ser um documento histórico privilégiado tanto pelas coisas que fala quanto pelas que silencia. No roteiro e na arte impressos, ele nos fala sobre o quanto não é recente a consciência do perigo representado pelo fanatismo religioso, da capacidade de exercer tirania das forças militares e denuncia como isso é usado para manter desigualdades e distribuir mal a renda. No silêncio sobre a diversidade de gêneros e de etnias, somado ao machismo com o qual as mulheres foram representadas, ele grita o quão frágil deve ter sido a vida de quem não era branco, hétero, cis e estava economicamente abaixo da classe média em fins do século XX. Afinal, nem mesmo no fundo dos vagões do ultimo bastião da humanidade essas pessoas pareceram aos autores serem dignas de ganhar um lugar para existir.
Para concluir, não posso deixar de pontuar como é curiosa a forma como uma obra sobre o futuro nos faz pensar sobre o presente e nos conta sobre o passado de forma tão autentica e direta. Esse realmente é um HQ para se ter na estante.
Oi, Pandora!
ResponderExcluirSó assisti a adaptação e gostei mais ou menos...
Beijos
Balaio de Babados
Participe do sorteio de aniversário do Balaio de Babados e O que tem na nossa estante
mais uma distopia jaci?
ResponderExcluirOi, Pandora
ResponderExcluirNão fazia ideia da existência desse livro e nem sabia que tinha um filme.
Geralmente acho bacana esses cenários apocalípticos, mas o fato de ser uma HQ me afugenta, pq não leio quadrinhos... a não ser as tirinhas cômicas da Sarah Andersen...
Beijo
- Tami
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Olá, Pandora.
ResponderExcluirQue coragem ler ele em um trem, dai não tem como não ficar pensando hehe. Eu assisti o filme e não gostei muito. Acho que por ser uma adaptação ficou bem mais ou menos. Por isso pode ser que u leia ele, mas não tão já.
Prefácio
Oi Pandora! Eu vi o filme e amei. Na sequencia comprei a HQ, mas ainda não li. Pelos seus comentários, percebe-se o quanto é bem mais profunda a história no original. Eu achei muito legal sua ideia de ler no metrô.
ResponderExcluirBjos!! Cida
Moonlight Books