Não lembro mais o porquê de "Desonra" ter ido para no meu kindle. Em algum momento de 2017 vi o e-book e comprei, mas não peguei para ler imediatamente e o tempo passou. Só agora topei novamente com ele e resolvi ler e fiquei absurdada com o magnetismo da narrativa do Coetzee. Comecei a ler meio incerta em relação às minhas próprias escolhas passadas e a forma como consigo ser uma perdulária profissional e muito rapidamente me vi presa em uma história muito tensa, narrada por um personagem problemático, dentro de um momento da nossa história recente muito enviesado e atroz.
Claro que como brasileira que sou estou bastante familiarizada com as atrocidades do mundo colonizado. Não sou inocente das torpezas do mundo, vivo em um país no qual miséria e fartura convivem lado a lado e em vez de resolver as questões de desigualdades as pessoas com mais recursos investem em sistemas de segurança e estratégias para alargar ainda mais as desigualdades. Conheço a brutalidade, eu sou uma mulher nascida e criada numa favela, no entanto, ainda me choco quando me deparo com uma história brutal em tantas camadas diferentes como a contada por Coetzee.
A história se passa na África do Sul pós- Apartheid e conta sobre um professor branco de uma universidade que leciona literatura, David Lurie. Com 51 anos de idade, depois de dois divórcios, sendo pai de uma mulher adulta cuja profissão é ser fazendeira, David é um profissional bem medíocre, banhado dos pés a cabeça em privilégio branco. Incapaz de entender os limites entre "o que se quer" e "o que se pode ou não ter" ele acaba tendo um "caso" com uma de suas alunas, a Melanie, uma jovem de 20 anos.
O relacionamento do David com a Melanie é banhado em assédio, perseguição, constrangimento, no limite estupro. Mesmo não havendo tapas ou agressões, a garota é vítima de múltiplas violências. Ela vê seu espaço pessoal sendo invadido, fica numa posição onde dizer "não" geraria várias implicações para ela, é acuada, levada a ceder... todos os momentos sexuais dos dois são pontuados por apatia da parte dela. É constrangedor e doloroso acompanhar a primeira terça parte do romance, pois tudo é narrado do ponto de vista do David e a gente só se contorce diante da visão dele da vida, de sua visão de mundo, de sua perspectiva de ter direito a realizar seus desejos independente da ética, da moral, da vontade, ou do fato desse desejo ser correspondido ou não.
Não é spoiler dizer que David é acusado diante da universidade e caí, esse dado de realidade está na sinopse, é a premissa do livro, acompanhar a trajetória de uma desonra. Pesa sobre o nosso protagonismo as regras de um novo tempo no qual não se pode mais assediar uma estudante, a sociedade não aceita tal situação com a naturalidade dos velhos tempos. O curioso é notar o quanto o professor não se sente culpado de nada, pois apenas seguiu o caminho do seu desejo.
Todavia, a Epopeia da Queda do David é só a terça parte do livro, ainda existem mais duas partes. Após sofrer a sua desonra como professor, o protagonista faz uma pequena viagem para a fazenda onde mora sua filha única. E ai Coetzee nos coloca de frente a outro ângulo da violência do pós-apartheid na África do Sul, a saber: aquela que as vitimas do processo de colonização podem praticar contra seus colonizadores quando a oportunidade aparece.
A violência do processo colonizador, do Imperialismo, de praticas como o apartheid não batem de um lado só, isso comumente assusta a branquitude. As pessoas brancas com alguma frequência pensam que só a elas cabem os sentimentos humanos como o desejo e a capacidade de infringir qualquer lei moral para alcançar seus desejos. Assim como a Melanie se tornou um alvo dos desejos sexuais do David, a fazenda da Lucy, sua filha, se torna alvo dos desejos de propriedade de um de seus vizinhos, o Petrus, homem sul-africano que para obter a realização do seu desejo joga um jogo muitíssimo desonroso. É uma tragédia, especialmente para a Lucy!
A tragédia da Lucy, a forma como seus direitos são violados em uma trama que claramente visa expulsar ela para fora de sua fazendo ou no mínimo tomar dela esse pedaço de terra é o segundo ato dos três nos quais eu dividi o livro. É muito doloroso ver como os nossos corpos de mulher se tornam alvo das disputas de poder dentro da nossa sociedade, como é frágil nossa posição no mundo, como somos alvos fáceis para o desejo de outrem. A mulher negra e a mulher branca e a mulher trans e a mulher cis, se antes de qualquer coisa você é uma mulher então você também é um alvo e isso é uma morte em vida.
O terceiro, o grand finale é como o David reage diante da violência sofrida pela sua filha, como ele não é capaz de autorreflexão. A sua desonra não implica aprendizado algum. Inclusive ele segue a vida, com menos privilégios do que tinha quando era um professor medíocre de uma universidade renomada, aviltado e queimado pelas fagulhas que a violência sofrida pela sua filha trazem a ele, mas segue ali, se permitindo devaneios, fazendo um pouco de trabalho voluntário como forma de preencher o tempo livre... bem assim... puro suco de privilégio branco.
A África do Sul pós-apartheid me lembrou em alguma medida o Brasil pós-abolição, as pessoas brancas daqui também se sentiram acuadas pelas pessoas negras. Construíram suas vidas em torno da exploração das pessoas negras e tinham dificuldade em se equilibrar em um mundo onde não eram mais senhores. Muitas violências novas em folha foram inventadas ao longo do século XX para deter, isolar e manter as pessoas negras sendo exploradas, inclusive, por aqui, houve apartheid não oficializado que está se rompendo e criando muito incomodo.
Voltando a história contada por Coetzee em "Desonra", embora existam as vitímas e os agressores, nesse romance não existem heróis e vilões. Existem disputas de poder, desejos e violência. Na minha opinião a desonra não é da Lucy ou da Melanie ou do David ou do Petrus e sim dessa sociedade forjada em colonialismo, racismo, apartheid, genocídio e dor. E para trazer honra a esse mundo não basta dizer "agora somos todos iguais", é preciso haver reparação, redistribuição, reforma agrária. Somos uma sociedade da desonra. Enquanto não houver reparação, aqui e na África do Sul e no mundo colonizado, toda inocência pode ser, e com frequência é, castigada.
Esse foi um livro que li em um estado febril, terminei a leitura na madrugada de hoje, fiquei o dia todo com ele na cabeça. Escrevi esse texto para expurgar um pouco dessa febre, portanto, talvez a resenha esteja um pouco delirante. É um livro brilhante, nem um pouco didático, muito franco, corajoso e seu sucesso se deve, em parte, também pelo ao fato da branquitude ser muito narcisista e adorar histórias sobre si mesma, mesmo quando elas colocam em evidência o quanto suas práticas colonialistas e racistas são capazes de distorcer as pessoas e tornarem lugares lindíssimo locais onde existe um poço sem fundo de desonra. Ilustrei ela com imagens da adaptação cinematográfica do livro feita em 2008.
sim, o livro mostra os estragos da colonização q gerou uma infinidade de pessoas a margem da sociedade, inclusive financeira, como vc diz, q nós conhecemos bastante. provocando revolta, falta de inclusão e muito, mas muito ódio. eu achei surpreendente como coetzee fala tão claramente da violência. como nós violamos e propagamos violência no colonialismo e ficamos chocados qd a violência volta. ótimo texto. muito bem contextualizado. vc colocou imagens do filme q é igualmente contundente.
ResponderExcluirGosto imenso de ler suas opiniões sobre os livros. a motivação que a fez levá-lo para seu kindle creio que deve ter sido a mesma que te fez febril com a leitura agora. Tão triste e exaustivo ver que avançamos no tempo, nos aprimoramentos e tudo continua tão belamente maquiado porém igual, ou melhor desigual. Nossas pequenas guerras de extermínios ora num município pouco conhecido, ora na grande cidade tem a capacidade de não nos alarmar como nos alarmamos com a atual guerra.
ResponderExcluirBeijo
Oie, queridona! Que tudo ter sua visita no meu cantinho com novo nome, amei muito. Obrigada pela visita e carinho de sempre. Quanto ao seu post, simplesmente perfeito. Não li o livro e nem vi o filme, mas vou atrás. Nós brancos somos uma vergonha. Somos absurdos demais. Somos criminosos. E acho que não aprendemos nada com a história, com as atrocidades que nós mesmos fizemos, já que continuamos. Seu texto está excelente e seu ponto de vista também. Bom demais voltar aqui, estarei sempre, de novo.
ResponderExcluirBeijo, beijo!
She