quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

"A Origem de Javé: o Deus de Israel e seu nome" de Thomas Römer


Como cristã, ao longo da minha primeira década como historiadora tive preguiça de investigar a fundo a História dos Hebreus e de Israel, ficava nas águas rasas do conhecimento e estava feliz. De certa forma, confrontar minha fé pessoal com a ciência parecia aquele exercício nada promissor, capaz de esfriar minhas convicções religiosas. Porém, nessa segunda década de vida profissional, o momento político do Brasil se enviesou de maneira catastrófica com a narrativa religiosa e, de repente, não mais que de repente, largar a preguiça e enfrentar o desafio de entender melhor Israel, o Reino dos Hebreus e a forma como a narrativa bíblica foi construída ao longo do tempo se tornou essencial. E assim, comecei a estudar Arqueologia Bíblica, adquirindo livros como "A origem de Javé: o Deus de Israel e seu nome" de Thomas Römer.

Thomas Römer é um biblista suíço nascido na Alemanha, exegeta, filólogo, professor e ministro reformado, atualmente é administrador do Collège de France, mas já lecionou na Universidade de Genebra, foi professor de Antigo Testamento na Universidade de Lausanne e ocupou a cátedra "Ambientes bíblicos" no Collège de France. Em "A Origem de Javé: o Deus de Israel e seu nome" ele apresenta escrita direta em um texto de fácil leitura, surpreendentemente envolvente e cativante, uma jornada pelo conhecimento arqueológico contemporâneo sobre a construção do monoteísmo bíblico tão central na História do Ocidente.

Já de início, somos introduzidos a Historiografia da Arqueologia: as primeiras pessoas dedicadas a "A Arqueologia Bíblica e das Terras do Velho Testamento" pesquisavam com a ciência na mão direita e a Bíblia na esquerda, buscando a comprovação da veracidade das Escrituras Sagradas do Cristianismo e Judaísmo, era uma "Ciência Auxiliar" voltada para um fim específico. Inclusive, lembro bem de ler em meu livro da 5ª Série do Fundamental, atual 6º Ano do Fundamental, que entre as ciências auxiliares da história estava a Arqueologia.

Nas últimas décadas do século XX, antes tarde que mais tarde, as pessoas dedicadas à Arqueologia mudaram suas perspectivas de pesquisa e análise. A prática da pesquisa e os achados arqueológicos levaram a construção de uma ciência com objetivos e métodos próprios, independente, sem obrigação ou pretensão de comprovar nada e sim se aproximar tanto quanto possível do conhecimento acerca da realidade vivida pelos seres humanos no tempo. E quando o assunto é a realidade vivida no passado, é bom não criar expectativas e preparar o coração, o passado é terra estrangeira, não nos deve satisfação e nem está ali para suprir nossas carências de verdade e apoio teórico para algo transcendental como a fé. Parafraseando Katja Petrowskaja no brilhante "Talvez Esther", "o passado vive como quer, só não consegue morrer.".

Thomas Römer apresenta a história da construção da Bíblia Judaica como criação literária com forte intuito político. Seus livros sendo uma síntese de histórias contadas e recontadas oralmente ao longo dos séculos pelos hebreus que ao serem transformada em texto escrito tinham o intuito de unificar o povo em torno da monarquia para enfrentar ou dialogar com os poderes que se erguiam nas região onde hoje é a Palestina, como os assírios e os amoritas. A Bíblia hebraica é um exemplo de literatura de tradição construídas a partir da memória preservada pela oralidade, assim como narrativas mitológicas não meramente mentiras deslavadas criadas ao acaso para atender demandas dos poderes estabelecidos, esses textos preservam em si, apesar de tudo, elementos concretos e memórias da história dos povos responsáveis por criá-las.
"... as narrativas contidas no Pentateuco e nas outras partes da Bíblia Hebraica não são invenções provenientes de gabinetes de intelectuais sentados à sua escrivaninha: a literatura bíblica é uma literatura de tradição; os que a puseram por escrito a receberam, e tiveram em seguida todo o templo para transformá-la e interpretá-la, reescrevê-la, modificando as tradições mais antigas, às vezes de maneira drástica, mas, na maioria dos casos, fundada sobre núcleos arcaicos que podem ter sido redigidos muito tardiamente, conservando 'traços de memória' de tradições e de acontecimentos anteriores." (pág. 15)
Assim como a Bíblia Hebraica, o monoteísmo judaico também emerge como produção humana e construção histórica. A  princípio Javé não era o único Deus existente para os antigos hebreus, entre os livros do Velho Testamento, inclusive, encontramos textos nos quais se admite a existência de outros deuses. No conflito de Jefté, lide militar de um tribo israelita contra Seon, rei de um dos povos vizinhos de Irasel,"para resolver o conflito territorial, Jefté utiliza argumento teológico: "Não possuis o que Quemós, teu deus, te fez possuir? E tudo o que o Senhor, nosso Deus, nos entregou em posso, não o possuiríamos nós? (Jz 11, 24)" (pag. 13)

Nos primeiros livros da Bíblia é possível perceber a pluralidade de divindades entre as quais Javé existia, figurando como a mais poderosa, mas não a única. Foi em meio aos conflitos com os povos vizinhos e a dominação primeiro dos Assírios e depois dos Amoritas do Novo Império Babilônico que a Israel desenvolveu a peculiaridade dessa religião na qual existe apenas uma divindade intangível, criadora, toda poderosa, cujo Nome Sagrado expresso no Tetragrama YHWH não pode ser pronunciado.

Ao longo do livro, Thömas Romer disserta sobre o enigma do Nome Divino, sobre a origem geográfica do culto, sobre Moisés, Midiã e muitas desconstruções de mitos. É destacar o papel das reformas promovidas pelo Rei Josías descritas nos livros de 2 Reis, capítulos 22 e 23, e 2 Crônicas, capítulos 34 e 35. Foi nesse período, diante do perigo do crescimento do Império Assírio na região que um conjunto de sábios da corte se concentrou na transformação das tradições orais em matéria escrita, combatendo inclusive o culto a outras divindades e começando a cimentar a importância da cidade de Jerusalém como lugar específico de culto a Deus.

Inclusive, há indícios de que o Deus de Israel era adorado através de uma imagem situada no tempo de Jerusalém ao lado de sua consorte, "Aserá, a Rainha do Céu" também venerada de forma independente. O culto a Aserá foi duramente combatido, inclusive nos textos sagrados é atribuído ao culto dela parte da culpa pelo cativeiro na Babilônia. Foi só durante o período de 40 anos de exílio na Babilônia que foi desenvolvido o caráter transcendental e impossível de ser representado de Yhwh, tornando-o um Deus invisível e, impossibilitados de cultuar no templo destruído de Jerusalém surgiu a figura da sinagoga e a leitura do texto da Torá como parte fundamental da adoração. A Torá se tornou, perdoe-me o anacronismo, a pátria desse povo.

Aliás, é interessante perceber como os hebreus, lançando mão do uso de suas narrativas mitológicas, tomam para si, dentro de um contexto de derrota e cativeiro, a narrativa de suas vidas. Eles ressignificam toda a trajetória de derrota colocando-se não como sujeitos da ação de outro povo e sim sujeitos da ação de seu Deus, o qual mesmo derrotado permanece, não só sendo maior entre todos os outros como único. A derrota e a destruição de Jerusalém seguida da escravização de seus povo não ocorreram pela superioridade dos amoritas e sim e pelo fato de ter Deus entregando Israel a ele pelos pecados cometidos por Israel. É uma virada genial no sentido de manter a unidade, a alteridade cultural e o ego intacto.

"O objetivo dessa história é mostrar que a destruição de Jerusalém e o exílio não aconteceram por causa da fraqueza de Yhwh, mas que é Yhwh ele mesmo, que está na origem dessa catástrofe; ele se serviu dos babilônios para castigar seu povo e seus reis que não respeitaram os mandamentos divinos tais como se encontram no livro do Deuteronômio. Se Yhwh pode, então se servir dos babilônios, é porque ele os controla. Ele é, portanto, mais poderoso que os deuses babilônios. Assim se prepara a ideia monoteísta tal como se encontra nos capítulos 40 a 55 do livro de Isaías, que insistem no fato de que Yhwh, identificado como El, é o único verdadeiro deus e que as estátuas das outras divindades não passam de quimeras, feitas pelas mãos dos homens." (pág. 244).

No meio da pressão criada pelo crescimento do poder dos Assírios, o Pentateuco teria escrito para transformar em palavras escritas as tradições orais unificando o povo Hebreu diante de um inimigo poderoso. Exilados na Babilônia esse a história da Divindade Monoteísta transcendental, incorpórea cultuada pelo Judaísmo, Islamismo e Cristianismo tomou forma.

"De certa maneira, o judaísmo nascente inventava, assim, a separação entre o poder político e a prática religiosa, e entre uma prática religiosa e um território específico, permitindo ao judaísmo funcionar como uma religião de diáspora." (pg. 244).

O livro "A Origem de Javé: o Deus de Israel e seu Nome" foi uma leitura que me sugou. Devorei ele em questão de dias com a mente e a Bíblia abertas. Foi maravilhoso! É outra visão em relação à fé que orienta minha vida e uma visão necessária. Ainda estou digerindo o livro e pensando como vou fazer a transposição didática para minhas turmas de Anos Finais do Ensino Fundamental. A comunidade na qual leciono padece de um fundamentalismo religioso atroz, então não é fácil tocar nesses temas, mas seguimos rumo a sabe-se lá onde tentando ampliar os meus conhecimentos de mundo e os dos estudantes junto comigo.

Um comentário:

  1. E tão emocionante a frase "a Torá se tornou a pátria". Me lembra o que a Bíblia foi, é e sempre será para mim.

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