segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

"Anna Kariênina", de Liev Tolstói


Quando se trata de clássicos nada é fácil. Ler é uma aventura e escrever sobre eles um desafio, uma temeridade. Em um mundo como o nosso, no qual guerras se alastram, cidades são construídas e destruídas desde a Antiguidade até agora, uma coisa frágil, como uma pilha de "papel pintado com tinta" sobreviver ao tempo e ao desgaste não é algo corriqueiro ou comum ou vulgar. Clássicos permanecem sendo lidos, mesmo não sendo fáceis, e na mesma medida que encantam, desafiam e intimidam.

Ao menos eu, sempre me sinto desafiada, intimidada e encantada quando encaro um clássico e não foi diferente com "Anna Kariênina" de Liev Tolstói. O livro tem coisa de 800 páginas dividas em 8 partes, foi escrito na década de 70 do século XIX ao longo de três anos em um país cuja história, geografia e cultura não são a coisa mais corriqueira para mim. A Russia é tão fria quanto o Nordeste é quente, tem metade do território na Europa e metade na Ásia, foi palco de uma das mais importantes revoluções da História, A Revolução Russa, e eu pouco sei sobre esse gigante, o maior país do mundo.

Diante de tudo isso, qual não foi minha surpresa quando, ao topar o desafio de ler Tolstói descobri um autor cuja escrita é uma das coisas mais sedutoras do Multiverso!!! Genteeeee!!! É muitaaaa fluidez na escrita para uma pessoa só! Eu fiquei absurdada, consegui escrever de maneira fluida, gostosa, descomplicada e envolvente é difícil em qualquer circunstancia ao longo de mais de 800 páginas, sem encher linguiça, é pura genialidade!


Anna Kariênina é pura genialidade feita livro e habitando entre nós. Nele Tolstói nos conta não só a história da personagem titulo do livro, mas de um conjunto de pessoas pertencentes a classe senhorial russa de fins do século XIX em especial a de dois núcleos familiares, um ligado a personagem titulo Anna Kariênina e outro ligado ao Konstantin Dmitrievich Liévin. Como nos novelões da vida todos os personagens compartilham ligações de diferentes densidades e se encontram aqui e ali mesmo quando seus núcleos de ação são geograficamente distantes ou mesmo opostos.

Aliás, tive a impressão ao longo da leitura que a personagem titulo do livro não é em si a protagonista da história, diga-se de passagem ela só aparece no capitulo 18, 7 dezenas de páginas após o inicio do livro. O protagonismo aqui pertence não a um personagem mas ao conjunto formado por todos os personagens vivendo suas dilemas, amores, sucessos, fracassos, glórias e tragédias.

Tolstói abre esse calhamaço dizendo: "Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz á sua maneira.", em cima dessa premissa ele desfolha as desventuras de várias famílias em graus diversos de infelicidade. Dentro desse jogo de mostrar diferentes situações familiares conflituosas é construído um romance cheio de contrastes. A vida no meio rural e no meio urbano; a modernidade do resto da Europa e a falta de habilidade da Russia em acompanhar os avanças tecnológicos; a vida em São Petersburgo e a vida em Moscou; a vida conjugal de um casal que vive em matrimônio e a de um que vive em adultério; a vida de um bon vivant e de um homem consciencioso com suas obrigações.

Há quem sustente a existência do oposto entre a situação de um senhor de terras e dos mujiques (servos) russos, mas honestamente para mim esse jogo não existe, pois o foco do livro é inteiramente a classe senhorial russa, todos os personagens centrais e periféricos em cuja mente entramos e cujo olhar acompanhamos são senhores. Em nenhum momento a lente se volta para um mujique e nós vemos o mundo pelos olhos deles, sempre que olhamos para ele é pelos olhos de Liévin, um grande proprietário de terras.


São muitos os opostos explorados por Tolstói e para mim o mais marcante foi o oposto entre a vida das mulheres e dos homens. Toda a história narrada em Anna Kariênina começa quando a cunhada dela descobre o adultério do irmão dela, Oblonsky, e este a convoca para ajuda-lo em sua dificuldade. Ao chegar em Moscou ela conhece o Conde Vronski e daí começa a fluir o arco da Anna no conjunto dos vários arcos do livro.

Tanto Anna quanto seu irmão Oblonsky vivem uma história de adultério, entretanto de forma muito diversa. Para ele isso é corriqueiro a ponto de não ser digno de nota, ter um caso extraconjugal é uma forma de expressão de sua LIBERDADE de ser. Para ela é um ponto de virada em sua vida, o despertar para a possibilidade de viver intensamente, também é um pecado mortal, um desvio moral, uma indignidade, uma nodoa em uma trajetória de vida até então límpida.

Tolstói é milimétrico na construção de seus personagens e embora seja possível sentir o quanto ele se inclina para Liévin, um personagem com traços autobiográficos, também se sente o quanto o autor evita juízo de valor. Ele descreve seus personagens e deixa por nossa conta as conclusões ´do tipo "quem é o que na história".

Sendo feminista, os opostos de gênero gritaram aos meus ouvidos. A contraposição mais forte da história para mim foi a existente entre homens e mulheres. Todos os personagens são dotados de uma grande vida interior, com uma psique complexa, cheios de desejos e sonhos e ambições, mas só os homens são senhores de seus destinos, livres para ir e vim, escolhem quando vão se ligar a uma mulher e como. Já as mulheres quase sempre presas a vida doméstica, ao circulo familiar, a espera pelo casamento ou administrando as situações trazidas pelo matrimônio como filhos e dividas.

De todas as mulheres a única que escolhe algo para si é a Anna e por essa escolha paga um alto preço. Dona de uma vida doméstica confortável, para não dizer luxuosa, casada com um homem pacato e generoso, Anna pode até ser considerada mimada, afinal tinha tudo para ter uma vida confortável, até mesmo o adultério o marido suportaria se ela fizesse as coisas dentro das regras descritas pela sociedade, porém ela se revolta contra tudo isso. Embora se considere uma pecadora, ela decide não ser uma boneca de luxo vivendo uma vida pre-planejada e se joga em sua paixão por Vronski, sem se perguntar se ao menos ele merece os riscos desse mergulho.

Anna é um personagem profundamente moral, mesmo sentindo a hipocrisia da sociedade, ela absorve esses valores, internalizar os juízos de valor e mesmo quando "quebra o pau da barraca" e vai viver seu amor extraconjugal, ela não fica em paz consigo mesma. Diferente de seu irmão para o qual o adultério é um exercício de liberdade para ela aquilo é um pecado, um crime, uma queda, ela é sua própria Inquisidora e Promotora.

Embora a sociedade a incrimine não por ser adultera, mas por viver abertamente o adultério, ela acusa a si mesma por trair não os princípios sociais e sim seus princípios e ideais de fidelidade. Incrivelmente perceptiva, ela vê com clareza o quanto seu destino depende de outros, compreende o conforto existente na situação de mulher casada, a fragilidade da situação que escolheu viver, o horror de ter deixado o filho gerado com o marido, a mesquinhez de não conseguir amar a filha gerada com o amante. Nunca lhe escapa o quanto, na condição de amante, depende do Conde Vronski. É fácil julgar a Anna Kariênina, difícil é ser Anna Kariênina.

Ainda sobre as mulheres de Tolstói, elas são conscienciosas, perceptivas, dotadas de uma vida intelectual e resignação espantosas tanto que demorei a ser cativada pela Anna. A principio minha atenção foi cativada pela Kitty, seu relacionamento natimorto com o Conde Vronski e depois seu envolvimento digno de novela das sete com Liévin. A Dária, esposa do irmão da Anna, é igualmente cativante vivendo a saga de manter uma família de cinco filhos com um marido fanfarrão e irresponsável. A Varienka, amiga de Kitty, personagem de origem humilde, sem fortuna, adotada por uma senhora rica, que estando sempre em estado de fragilidade social, precisou aprender a se fazer útil a tudo e todos, habitando sempre um "não lugar" não é criada por sua educação refinada, não é nobre por não ter sobrenome ou terras para servirem de dote ou segurança na velhice.

Apesar de não ser capaz de mergulhar no mundo das mulheres com a mesma força dramática de uma autora, achei notável a capacidade de observação e compreensão da sensibilidade feminina do Tolstói. Não sei se foi intencional, mas achei incrível como ele documentou bem o machismo da sociedade russa. Chega a dar mal estar o nível de escrotidão dos homens desenhados por ele. Vronski, Obloski, Liévin, Sergei Ivánovitch, todos protagonizam cenas pavorosas com hipocrisias, ciúmes, irresponsabilidades. Os homens que permeiam a trama de Anna Kariênina são o que nós chamamos hoje de "embustes", provocam o sentimento de nojo.

Essa resenha está imensa a ponto de fazer pensa se realmente alguém nessa blogosfera vai ousar ler. Então preciso terminar ela de alguma forma e vou concluir dizendo: "LEIAM TOLSTÓI!" Não se deixem intimidar pelo volume, se deixem fascinar por essa narrativa incrível, por essa genialidade toda que flui por centenas de páginas sem jamais deixar nosso interesse e atenção caírem, mesmo quando as frases são enormes e os parágrafos infinitos.

A minha edição é da extinta Cosac Naify, mas a Companhia das Letras publicou uma linda, com a mesma tradução, então aproveitem as promoções da vida, peguem emprestado, leiam no Kindle, mas leiam, vale a pena!

10 comentários:

  1. Quero muito esse livro. 2018 será o ano de encarar Tolstoi <3
    Amei sua postagem, super completa, me deu ainda mais vontade de comprar essa obra.

    https://atocadalebre.blogspot.com.br

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  2. eu li faz tempo anna karenina e adorei. belíssima edição. ótima resenha. realmente a situação da mulher era pior no passado. mas pouco melhorou. beijos, pedrita

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  3. Para quem sofreu para escrever até que você escreveu bastante. Eu vi o filme, mas não curti o excesso do drama. Sou fraca para russos kkkk beijão pandinha!

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  4. Oi Pandora!
    Não sei se me animaria a ler 800 páginas atualmente com tantas leituras pela frente, mas é um desafio conferir esse livro e conhecer Tolstoi.
    Beijinhos
    Saleta de Leitura

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  5. Olá, tudo bom?
    Adorei sua resenha e eu quero muito ler esse livro. A revolução Russa é algo que chama a minha atenção.
    Beijos
    5 O'clock Tea

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  6. Olá, Pandora.
    Eu tenho muita dificuldades para ler clássicos. Mas esse ano me bateu uma vontade e fui lá e comprei Guerra e paz e espero gostar. E esse me interessou bastante também. Essa coisa do adultério e de como ele é encarado. Vou querer ler ele sim.

    Prefácio

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  7. Oi, Pandora!
    Mirmã, eu passo esse livro. Além do tamanhã dele, não me dou bem com clássicos.
    Beijos
    Balaio de Babados

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  8. Você precisa saber que consegue nos contagiar com o seu entusiasmo e amor pela leitura. Transborda isso na tua escrita.
    Eu é que sou fraca para 800 páginas :(.
    Aliás estou fraca para leituras. Nesse quesito sinto falta do metrô: as duas horas que levava para ir e as outras duas e meia para a volta me traziam tempo e companhia para os livros.
    um beijo!

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  9. Me deu uma vontade enorme de ler! Acho que os russos e seus livros nos são tão caros justamente por toda essa diferença, toda aquela grandeza,a imensidão branca e fria que aflige seus habitantes, tão diferente de nós - e que, de forma semelhante, fez Jorge Amado ser tão bem vendido por lá.

    Uma das coisas que mais me impressionam na literatura russa é o choque que temos à distância, de uma sociedade construída de forma tão rígida, e da pobreza, do peso que a classe social impõe ao seu ritmo de vida.

    Ah, eu gosto de resenhas grandes, a gente viaja por elas ;) Dois abraços!

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  10. Que resenha mais maravilhosa, Pandora! A melhor que li deste que há anos é e a cada releitura se ratifica como o meu romance favorito - muita gente condena Anna, mas eu não consigo, nem penso que possamos. Parabéns!

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