terça-feira, 27 de julho de 2021

Debaixo Do Vulcão de Malcolm Lowry

"Quauhnahuac era como o tempo sob esse aspecto, para onde quer que alguém se voltasse o abismo estava à espera logo depois da esquina."

"Debaixo do Vulcão" do Malcolm Lowry foi um das melhores e mais difíceis leituras que fiz nos últimos tempos. É um livro com pouquíssimos personagens, apenas quatro: Cônsul britânico Geoffrey Firmin, o protagonista, seu meio irmão Hugh, seu amigo de infância M. Jacques Laruelle e sua esposa Ivonne. Toda ação acontece na cidade mexicana fictícia de Quauhnahuac no "Dia dos Mortos" de 1938 e o nome do livro se deve ao fato da cidade ser sombreada por dois vulcões, o Popocatepeth e o Iztaccihiath.

O livro é um clássico do Século XX e é extremamente competente em mostrar a queda das ficções de civilidade criadas pelo Ocidente Branco Europeu para justificar seus atos absurdos pelo mundo. Não é um livro de leitura fácil, mas é de uma capacidade de cativar e envolver difícil de encontrar. Denso, quente, sincero, atroz, tocante, lírico, pesado, difícil de tirar da mente, mesmo agora estou em estado de encantamento e paixão pelo Cônsul Firmin, um homem em franco estado de mergulho no abismo do álcool, autoconsciente, desamparado, reflexivo, como todo alcoólatra, egoísta ao extremo, não tem explicação minha paixão por esse homem.

"Olhou as nuvens: cavalos escuros, rápidos, percorriam o céu. Uma tempestade sombria irrompia fora da estação! Era assim o amor, pensou; amor que vinha tarde demais. Só que nenhuma calma saudável o sucedia, como quando a fragrância da noite ou a luz vagarosa do sol e seu calor voltavam á terra surpreendida!"

A genialidade desse romance não é aleatória, Malcolm Lowry demorou dez anos escrevendo o livro e foi minucioso em suas escolhas narrativas. Narrando a queda de um homem, o Lowry narra a queda do Ocidente no ano no qual o Nazismo ascendeu no mundo Ocidental. Em novembro de 1938, o regime nazista matou judeus, incendiou sinagogas, saqueou e destruiu lojas da comunidade judaica e o governo nazista impediu a ação de polícia e bombeiros.

"O que adianta? Fazer ele ficar sóbrio um ou dois dias não ajudar em nada. Meu Deus, se a nossa civilização ficasse sóbria uns dois dias, ia morrer de remorso no terceiro..."

Levei quase um mês para ler "Debaixo do Vulcão", faz mais de mês que encerrei a leitura, mas o Cônsul em seu alcoolismo egoísta, frágil e autoconsciente permanece na minha cabeça. De certa forma a experiência de ler esse livro foi como a experiência de ser tomada por uma febre delirante, a febre passou, mas a memória do delírio permanece e tenho vontade de falar mais sobre ele, retomar os trechos mais importantes, comprar a edição física, transpor para o blog esse conjunto de inquietações.

Meu Deus, como alguém pode ser tão autodestrutivo como o Cônsul?!?! Meu Deus, como não ser autodestrutivo como o Cônsul quando se tem consciência das coisas acontecendo no Mundo?!?!? Como não se apaixonar por Ivone, como não ter empatia pela busca infrutífera dela por uma vida de paz com o homem destruído que ela ama tão profundamente? E o desamparo do Hugh diante da perda da inocência?!? O único personagem detestável ao meu paladar foi o Laruelle, e mesmo ele é extremamente necessário a narrativa, uma peça fundamental desse quadro de ruina, desilusão, violência e bebedeiras.

"Ele disse a si mesmo que aquilo não devia ser diferente do que sofre uma pessoa louca naqueles momentos em que, sentada mansamente no jardim do hospício, a loucura de repente deixa de ser um refúgio e encarna no céu estilhaçado e em todo seu arredor em cuja presença a razão, já entorpecida, só pode baixar a cabeça. Será que um louco encontra alívio em tais momentos, quando seus pensamentos como balas de canhão estalam dentro de sua cabeça, na refinada beleza do jardim do hospício ou das colinas em torno além da chaminé terrível?"

O livro tem forte cunho autobiográfico, Lowry botou muito de si nessa história, sua experiências de vida, desilusões, consciência do mundo, amor pelo álcool, devoção a sua esposa, sanidade e insanidade. Definitivamente um autor espetacular, realmente vou acabar comprando a versão física desse livro. Como não me permitir ter o Cônsul, a Yvone e o Henry em minha estante física quando eles já ocupam tanto espaço no meu coração?!?!? Esse é um livro, obviamente, para quem está no clima de enfrentar narrativas pesadas que dialogam com a história insana do século XX, a violência na América Latina, a falência das ilusões de civilização europeias, criticas sociais e alcoolismo, vale a pena cada linha.

"No entanto, a banalidade permanecia: que o passado era irrecuperavelmente passado. E a consciência havia sido dada ao homem para lamentar apenas na medida em que podia mudar o futuro. Porque o homem, todo homem, Juan parecia lhe dizer, assim como o México, tem de incessantemente lutar para subir. O que era a vida senão a guerra e a estadia de um estranho? A revolução medra também na terra caliente de cada alma humana. Não paz, mas isso deva pagar seu preço total ao inferno...)

Esse foi um livro cheio de trechos sensacionais, cheio de emoções exacerbada, desilusões, loucuras e álcool. Sem beber uma gosta de qualquer bebida alcoólica me sentir completamente embriagada pelas emoções do Cônsul e de sua família pavorosamente perdida em suas próprias emoções individuais e nas emoções do tempo no qual existiram no mundo. Poucas vezes me deparei com um personagem desesperadamente arruinado por si mesmo e simpatizei desesperadamente com ele, poucas vezes senti empatia por um alcoólatra. Não sei qual a magia do Malcolm Lowry, talvez a magia da sinceridade capaz de colocar em evidência a fragilidade e desamparo.
"O cônsul baixou os olhos afinal. Quantas garrafas então? Em quantos copos, em quantas garrafas tinha ele se escondido, desde então sozinho? De repente, ele as viu, as garrafas de aguardiente, de anís, de jerez, de Highland Queen, os copos, uma babel de copos - subindo, como a fumaça do trem aquele dia - construída até o céu e depois caindo, os copos virados e espatifados, morro abaixo os jardins Generalife, as garrafas quebradas de Porto, tinto, blanco, garrafas de Pernod, Oxygènée, absinto, garrafas se espatifando, garrafas deixadas de lado, caindo com um som surdo no chão em parques, debaixo de bancos, camas, poltronas de cinema, escondidas em gavetas em consulados, garrafas de Calvados caídas e quebradas ou explodindo em caquinhos jogadas em montes de lixo, jogadas no mar, no Mediterrâneo, no Cáspio, no Caribe, garrafas flutuando no oceano, escoceses mortos nas terras altas do Atlântico - e agora ele as via, sentia o cheiro delas, todas, desde o comecinho - garrafas, garrafas, garrafas e copo, copos de bitter, de Dubonnet, de Falstaff, Centeio, Johnny Walker, Vieux, Whiskey blanc Canadien,  os apéritifs, os gidestifs, os demis, os duplos, os noch ein Herr Obers, os et glas Araks, os tusen taks, as garrafas, as garrafas, as linhas garrafas de tequila, e as cabaças, cabaças, cabaças, os milhões de cabaças do lindo mescal... O cônsul ficou sentado muito quieto. Sua consciência parecia abafada com o rugir da água. Ela batia e gemia em torno da casa de moldura de madeira com a brisa espasmódica, com nuvens de tempestade sobre árvores, vistas através de janelas, suas facções. Como ele podia mesmo esperar se reencontrar, começar de novo quando, em algum lugar, talvez em uma daquelas garrafas perdidas ou quebradas, e um daqueles copos estava, para sempre, pista solitária para sua identidade? Como ele podia voltar a olhar agora, rastejar no vidro quebrado, debaixo de balcões eternos, debaixo de oceanos?

3 comentários:

  1. fiquei muito interessada. anotado. beijos, pedrita

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  2. Ah, minha amiga que boa lembrança! Explico: eu vi o filme baseado neste livro (À sombra do vulcão, lançado nos anos 80). O filme foca mais na - digamos - traição da mulher do cônsul e na posterior volta dela. Mas deu pra ver que havia muito mais, então eu havia decidido que compraria o livro. Mas, por uma razão ou outra, a intenção não se cumpriu. Então eu vou tentar cumpri-la agora, rsrs.

    Beijo

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  3. UAU! Que denso!
    Acho que nunca li nada parecido, tenho que procurar um momento ideal para algo assim, pois seria um desafio!
    beijo
    http://estante-da-ale.blogspot.com/

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