sábado, 6 de junho de 2020

Barricadas...


Quando vim para cá, trouxe pouca coisa comigo. Eu mesma, Lion, roupas, documentos, computador, dois lençóis, livros. Eram tão escaços eram os símbolos de minha existência aqui que comprei um móvel novo: uma mesa. O intuito era montar um mini-escritório, mas agora, olhando o meu entorno, me  pergunto se estou montando um espaço de trabalho, fazendo bagunça ou simplesmente montando barricadas durante a guerra.


Sentada aqui com meu café, meus livros e coisas doces, montando as aulas e os materiais didáticos para a turma do Sistema Seriado de Avaliação da Universidade de Pernambuco (SSA-02) me pergunto como isso aconteceu a mim que saia cotidianamente para enfrentar ônibus e metrô entre Recife e Jaboatão, 10 turmas, barulho, dores e amores. Trista mil mortos apenas contando os casos de Covid e a cada minuto outro e mais outro ser  humano tomba. Como a guerra nos alcançou por todos os lados dessa forma?

Lembro de ouvir Criolo profetizando em 2018: "Está por vir, um louco está por vir/ Shinigami, deus da morte, um louco está por vir". Nenhum dos massacres dos últimos anos me surpreendeu. Mas ainda não consegui digerir nenhum deles. De fato "ponto 40 rasga aço de arrombar", mas "não mata mais que a frieza no olhar" das pessoas que introjetaram os valores do capitalismo bem o suficiente para considerarem pessoas como minhas crianças e adolescentes, meus amigos, vizinhos e eu mesma como não-pessoas, corpos descartáveis, excesso populacional, força de trabalho fácil de repor dentro do sistema.

Dizem: ninguém é insubstituível. Poucas mentiras são tão escabrosas quanto essa. Não nascem dois seres vivos iguais nesse mundo, não existe NINGUÉM, todos somos ALGUÉM, nenhum de nós é SUBSTITUÍVEL. Nem a pessoa mais solitária ou terrível desse Multiverso é alguém capaz de causar impactos na vida dos seres a sua volta.

Escuto o rádio, vejo TV aberta, vou no mercado vez ou outra e me sinto aterrada pela frieza do olhar lançado as pilhas de mortos a se avolumarem nos necrotérios, cemitérios, hospitais de campanha mal equipados espalhados pelas cidades. Os meios de comunicação falam de um "Novo Normal" seguem conduzindo nosso olhar para a direção da aceitação da inevitabilidade da morte, da precariedade da vida, de perdas e mais perdas.

Monto barricadas em torno de mim com livros, café, uma xícara quebrada, doces, músicas capazes de confortar, laranjas doces e afetivas, pois não desejo perder essa batalha. Por muitos anos me senti vazia de desejos e sonhos, mas nesses meses, trancada comigo mesma, sinto meu útero seco fecundado, me sinto grávida de desejos e sonhos. Tenho enjoos, sono, insonia, medo, nervosismo, fome e falta de apetite.

Me sinto pesada e leve enquanto percebo crescer dentro de mim o desejo de conhecer pessoalmente cada um dos meus estudantes do SSA-02; sonho com bolo, doces e salgadinhos. Quero acompanhar meus ex-estudantes tão amados em suas trajetórias pela vida. Sinto a urgência de revê meus estudantes, as 10 turmas inteiras, os 6º A, B e D; os 7º A, C e D; o 8º Único,  os 9º anos A, B, C, D. Quero oferecer coisas doces a eles e elas, ri com eles e elas, me aborrecer e da risada e da bronca, perder as estribeiras. Desejo olhar bem para eles analisando e me surpreendendo com a forma rápida com a qual o crescimento de seus corpos de seus corpos acontece e o brilho da chatice brilha naqueles olhos adolescentes. Sonho em rever minhas amigas e meus amigos, em planeja férias, projetos pedagógicos, aulas extra-classe, tardes na praia, Nick e Clara.

Não sei como será o amanhã, ainda não reaprendi a confiar na possibilidade do futuro. O amanhã me parece perpetuamento um espaço instável. Vivo absolutamente no AQUI e AGORA, mas com desejos de avançar, de escapar de fins prematuros.

4 comentários:

  1. qd eu saí de casa tb levei pouca coisa. passei anos sem tv. sofá então, mais anos ainda. hj por sorte é um lar q amo. e amo meus objetos. a frieza de quem só olha números com indiferença é assustador. se cuida. beijos, pedrita
    http://mataharie007.blogspot.com/

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  2. Pandora, ler essa ultrassonografia, crescente de sonhos, desejos e vida, me é um alento.
    Estão querendo roubar sonhos, anulando nosso Enem. Saber que vocês têm um sistema seriado é uma alegria, é um sopro de sonho que se mantém.cSigam firmes, adoçando e fazendo barricadas com laranjas doces.
    Beijo

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  3. O momento é de reflexões mesmo, principalmente para os jovens que têm a cabeça mais aberta, vejo posturas e palavras horríveis de gente de minha geração, que nem parecem pertencer a geração rock and roll, que clamava por liberdade...e hoje defendem genocida autoritário.
    Vocês, bons professores inspiram não só aprendizados mas humanidade, sensibilidade e atitudes.
    A gente não precisa muito para viver com dignidade.
    Abração, Jaci!

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