Comecei maio com a intenção de ler livros russos. Fui na estante vê quais tinha, fiz uma bela pilha na minha mesa de estudo, tirei uma bela foto, publiquei nas redes sociais minha expectativa e simplesmente não fluiu de jeito algum. Na primeira página de "A morte de Ivan Ilitch" senti um peso danado, larguei tudo lá no canto e me agarrei com essa edição linda de "Volta ao Mundo em 52 Histórias" narradas por Neil Philip e lindamente ilustrada por Nilesh Mistry.
Ainda quero ler os livros russos da minha estante, são livros lindos, bem traduzidos em edições primorosas, mas de repente me sentir sufocada pelas paredes da casa e os muros do quintal. Senti vontade de da uma volta por ai, como atualmente dar voltas é um ato insalubre, optei viajar pelos reinos da fantasia do planeta Terra.
Lendo "Volta ao Mundo em 52 História" viajei por diversos lugares da Terra, dei vários pulos pela Europa, uma volta na Ásia, desembarquei em praias das ilhas da Oceania, respirei o calor intoxicante das cidades do Oriente Médio, visitei povos da África e caminhei através das Américas do Norte, Central e Sul. Foi magico e maravilhoso! O livro foi escrito de uma forma suave de maneira a ser lido por pessoas alfabetizadas de todas as idades, mas fiz questão de ir de vagar para apreciar mais a viagem, as mudanças de temas e as diferentes temperaturas do mundo.
As histórias foram divididas em quatro grupos: "Encantamentos", onde se narram histórias nas quais os personagens são de alguma forma encantados por seres mágicos como fadas ou bruxas; "Trapos e Plumas", onde se narram histórias nas quais os protagonistas enriquecem da noite para o dia; "Heróis e Heroínas", histórias onde o/a protagonista precisa mostrar valentia para chegar a seu final feliz; e "O Amor Tudo Vence", histórias nas quais o amor vence os enganos.
Dentro dessas subdivisões encontrarmos tanto histórias clássicas como a de "Branca de Neve", "Chapeuzinho Vermelho", "Rapunzel" e "Cinderela" como história que soarão inéditas a muitos ouvidos. Nunca tinha lido "Por que o mar tanto chora", uma história do litoral nordestino na qual se conta como uma princesa encontra seu príncipe ao longo de um Carnaval auxiliada por uma cobra chamada Dona Labismina.
Gostei muito especialmente do conto "A Alma e o Coração da Baleia", tem um final melancólico, mas a beleza as vezes tem dessas coisas de melancolia. Amei a esperteza do protagonista do conto vietnamita "A Mosca" . Fiquei encantada com a história chinesa "Brocado Maravilhoso" no qual se narra como uma viúva se encanta com um quadro e acaba passando um longo tempo transformando ele em um brocada. Ela coloca tanto de si na peça a ponto do brocado se tornar tão importante quanto sua própria vida e me fez lembra de uma amiga que é absolutamente viciada em crochê. Acho magico como a habilidade das mãos transforma linhas em tecido.
Os contos são de lugares e época anteriores a que vivemos, para contextualiza tem muitas notas explicativas nas margens das paginas e ilustrações lindíssimas de Nilesh Mistry. É uma viagem geográfica e também no túnel tempo, encontrando o passado em cada conto e coisas desagradáveis e surpreendentes desse passado.
É sempre desagradável percebe o quanto o conto da "Chapeuzinho Vermelho" permanece atual. Todas nós temos muito medo por nossas meninas, o mundo é ainda cheio de obstáculos para elas. Por mais quanto tempo nós vamos ter criaturas como o Lobo Mal assassinando mulheres idosas e crianças? Não aceito "Sempre vai ser assim!" ou "Isso nunca vai mudar!" como respostas. SEMPRE e NUNCA é muito tempo, no entanto também não tenho nenhuma perspectiva de mudança, só uma rotina de lutas dentro e fora de casa por direitos e igualdade e humanidade.
Acho curioso também como os contos de fadas não se esgotam. Perdi a conta de quantos livros de contos de fadas já li na vida, tenho uma coleção deles na estante, mas cada leitura me faz vê coisas que antes eu não via. Por exemplo, dessa vez reparei no quanto tem ladrões nos contos de fadas europeus. Rapazes preguiçosos e metidos a espertalhões roubando de criaturas da floresta cujo único pecado é terem uma aparência diferente da comum e guardarem uma fortuna. Fico pensando se na origem dessas histórias não se encontram pessoas com alguma deficiência cognitiva cujos preconceitos sociais e culturais obrigou a se esconder na floresta e mesmo assim se tornaram vitimas e alvos fáceis para esses rapazes trapaceiros e mal intencionados.
Gostaria ainda de registrar minha surpresa como o conto romeno "O Príncipe Dragão", nele se conta a história de um princesa, filha mais nova de um Rei vassalo de um império que para cumprir um edito imperial se disfarça de príncipe, vive a vida inteira na corte como um homem conhecido como Príncipe Dragão. Vivendo como Príncipe Dragão a princesa resgata outra princesa, vira através de magia um homem, casa-se com a princesa e toma para si o império. Dragão é um homem trans, nasceu mulher e se transformou em homem primeiro a partir da estética, depois por magia muda definitivamente seu gênero e vive feliz para sempre lindamente.
Quando o eremita mudou o gênero de Dragão pensei que haveria algum tipo de conflito, o feitiço seria rompido e o engodo desfeito, mas não, transformado em homem, ele segue o bonde, destrona o Imperador e desposa a princesa. As cirurgias das quais as pessoas saem vivas e com possibilidade de viverem uma vida podem até ser uma novidade histórica do século XXI da Era Comum*, no entanto a existência de pessoas trans é mais antiga no tempo.
Enfim, é muito satisfatório ler contos de fadas, viajar por diferentes culturas e sonhar sonhos tão maravilhosos em uma edição tão linda. Esse foi mais um livro da Coleção de Livros com os quais a Ana Seerig me presenteou. E sim, a questão do Príncipe Dragão ser um homem trans, quem está destacando sou eu, o livro não aborda essa questão de forma alguma, ele só conta a história, contextualiza historicamente e nos premia com lindas ilustrações. As intepretações ficam a cargo da pessoa leitora, inclusive a minha edição foi publicada em 1998 e nesse momento, aqui no Brasil, estávamos muito distante de qualquer discursão sobre visibilidade e direitos das pessoas LGBTQIA+.
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*Era Comum é o período que mede o tempo a partir do ano primeiro no calendário gregoriano. É um termo alternativo para Anno Domini, latim para "no ano do (Nosso) Senhor", também traduzido como a Era Cristã.
o livro do tolstoi é mesmo bem complicado pra tempos de pandemia. lindo o livro q escolheu depois pra espairecer. eu tenho visto muitos filmes de fantasminhas pra fugir da realidade tb. beijos, pedrita
ResponderExcluireu li um pouco antes e comentei https://mataharie007.blogspot.com/search?q=Ilitch
Deve ser um livro interessante. Eu sou também fã de estórias curtas, contos, novelas... porque admiro o poder de síntese de alguns escritores. E essas estórias geralmente podem ser lidas numa 'sentada', que é o que a gente deseja, às vezes.
ResponderExcluirQuanto aos russos, talvez não seja realmente o momento mais propício para você. Os russos que eu já li (lista encabeçada por Tolstói e Dostoiévski, que são os meus favoritos, passando por Gorki, Tchekhov e até mesmo Soljenitsin) mostraram um traço comum: uma busca de profundidade, quanto à exposição do assunto abordado. Uma certa moralidade, uma ligação com as coisas mais espirituais... enfim, eu gosto. Mas eu concordo que não é sempre que a gente se encontra com disposição para esse tipo de literatura, há ocasiões em que desejamos coisas mais leves e mais capazes de nos distrair.
Beijo e boa semana