domingo, 8 de outubro de 2017

O Museu do Cais do Sertão pelos olhos de quem é do Agreste/Sertão

Em Recife existe um museu chamado "Cais do Sertão" no qual,  segundo o próprio site institucional, se pretende, com recursos de tecnologia inovadores, automação e interatividade, além da leitura generosa de cineastas, escritores, artesãos, artistas plásticos, artistas visuais e músicos de todo o país, apresentar os fortes contrastes que marcam a vida nos sertões nordestinos, proporcionando aos visitantes uma experiência de imersão nesse universo.

Em Janeiro de 2017 levei minha amiga Claudinei para visitar o espaço no qual a memória de seu povo é exposta a população de Recife e Região Metropolitana assim como a dos turistas que visitam a cidade. O resultado dessa visita está escrito abaixo em um relato desconcertante da própria Claudineia:




Fui fazer a visita a este museu pensando em visualizar um pouco da história do meu povo. A recepção, a entrada, primeira impressão, estou em um lugar cultural, tenho muito mais a aprender hoje. Começo a fazer a visita e meu humor drasticamente começa a mudar.


Não me senti representada em quase nada ali disposto.  Mesmo visualizando objetos e vendo retratos da nossa vida cotidiana. O meu sentimento foi de estranheza, de dor, de tristeza. Não me senti representada, não vi um povo lutador, guerreiro, trabalhador, corajoso, cheio de fé, bondoso, inteligente, criativo. Acho que senti pena do meu povo, da minha gente, tristeza pela realidade que vivemos.

Nós do Agreste ou Sertão, não somos um povo dignos de pena! Somos e fazemos histórias, não somos expectadores de um lugar seco com pouca água e só. Não somos um povo ingênuo, mas acreditamos na bondade do ser humano, somos criativos nas soluções diárias para encarar as dificuldades que vivemos.



Ai uma pessoa que não conhece o sertão, ou até que já foi lá, pode perceber ali toda a riqueza cultural da nossa história, mas qual a visão de homem do sertão que fica? Qual a visão de mulher do sertão que fica? Quem são nossas crianças?

Minha reflexão é que a nossa história no museu foi contada por pessoas da cidade, e no final eu vou continuar sendo vista com pena quando disser que sou do agreste, que trabalhei na roça, que carreguei água na cabeça, que acordava cedo, que não tinha tempo para brincar por que precisava cuidar da casa e das irmãs mais novas. Eu não sou um bicho estereotipado, digno de pena que deva ser colocado em uma fotografia sem contextualização!


Se eu fosse contar a história do nosso povo com aqueles mesmos objetos ali apresentados, provavelmente iniciaria contando como as crianças desde bem pequenas começam a ter responsabilidades, como os homens são trabalhadores, a ponto de ficar o dia inteiro no sol forte durante todo o ano para garantir o sustento da família (sem atestado, sem férias, sem décimo) como as mulheres são guerreiras que, cuidam dos filhos, que também procuram empregos e outras rendas fora da roça e ainda mantém a organização da casa e seus filhos limpos e saudáveis. Homens e mulheres que estudam, fazem carreiras, continuam na roça, saem da roça. Quanto orgulho eu tenho do meu povo, da minha história, das minhas raízes.


Quantos sentimentos iriam surgir se as pessoas conhecessem um pouco da garra e da coragem do povo do sertão? Um povo que diariamente vence as batalhas com a Natureza, o desgosto de ver seus animais morrerem, sua roça secar, sua semente acabar e continuam lá, lutando, vencendo, trabalhando, esperando, acreditando...

Eu queria conseguir expressar tudo que senti sendo imersa naquele laboratório. A experiência criou em mim um desejo de gritar...


NÃO É SÓ ISSO!
NÃO SOMOS ESTÁTICOS!
NÃO SOMOS EXÓTICOS!
NÃO ESTAMOS NA CAIXA
 EU TÔ AQUI! 

Somos história, somos sertão, somos Pernambuco, somos um povo de fé! Não pensem que nossos problemas podem ser resolvidos com um jogo com alternativa A e B. Diariamente temos perguntas a responder e experiências a considerar, e uma história a preservar... As vezes temos que juntar um pouco do A com um pouco do B e fazer... e nos outros dias tentar B+A ou C. Não temos questões simples que se resolvem com ALTERNATIVAS de múltipla escolha...

Ainda não estou leve, queria poder falar mais, queria que esse grito fosse relevante, queria me sentir em casa, queria saber que sou respeitada pela garra do meu povo. Não gostaria de ouvir, "a matuta""a menina do interior" com ar de deboche, de pena e de subestimação.



Tenho a impressão que para algumas pessoas (que não conhecem o sertão tal como ele é) o resultado da visita ao Cais do Sertão será o de sentimento de pena do meu povo. Não precisamos de pena! Precisamos de água!


Claudineia Gomes

12 comentários:

  1. Eu só queria gritar... amiga, obrigada por fazê-lo ecoar um pouco mais...

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  2. Que desabafo! Fiquei me sentido sufocada, como se estivesse lá também. Com certeza você conseguiu passar o que sentiu,( talvez não tudo, pois imagino a mistura de sentimentos), mas você gritou e nós te ouvimos através deste texto incrível. <3

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  3. há num culto ao exótico. querem sempre o inusitado para entrevistar, fazer sensacionalismo. o museu pode ter esse viés. até pq em geral buscar a aberração sempre atrai mídia e consequentemente patrocinador. triste a arte q se vende para continuar a existir. beijos, pedrita

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  4. Discordo. Acho que Claudinéia não entendeu a proposta. O museu é apenas UM RECORTE da vivência do povo nordestino. O homenageado do espaço é LUIZ GONZAGA e logo o conteúdo foi destrinchado através das músicas do Rei do Baião. Acho que o direito de não se sentir parte do que era apresentado é natural, ninguém tem a mesma percepção do que é apresentado. Em contramão ao discurso da Claudinéia,eu, como funcionário do espaço digo que por diversas vezes fomos e somos agraciados por discursos positivos. O Cais do Sertão, no discurso do educador do espaço, nunca foi um local digno de sentir pena, acho também que a Claudinéia não parou para conversar com um dos educadores/monitores. Mostramos ao mundo um sertão rico, poético, emocionante e encantado. Em um local grande, da altura do nosso sentimento pelo sertão. O museu mostra um conteúdo muito além da seca, fome, miséria, chão rachado, gado, mandacaru e calor. O lugar mostra um sertão de religiosidade, criatividade, festeiro, crente e trabalhador. O direito de não se sentir representado(a) é livre, mas levar isso como um discurso unificado é desconhecer o conteúdo apresentado. Maaas, críticas são importantes, acho que o museu tá fazendo bem o seu papel, graças a Claudinéia e tantos outros que como ela, ou diferente dela estamos discutindo o Sertão, a sua gente e a sua história. E um museu, que não desperta esse sentimento, não é um museu.

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  5. Amei seu post Claudineia! Isso mesmo, nós do Nordeste não precisamos de pena, de compaixão. Precisamos de água!! Pois somos um povo guerreiro sim! Não conhecia esse museu. Estive semana passada a Recife e não fui. Uma pena, da próxima vez irei!
    Beijos
    Adriana

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  6. Wow! Me senti sufocada!! Mas acho que a maioria que vai numa amostra dessa, já vai sabendo de antemão alguma coisa. Na maioria das vezes são pessoas atreladas ao lugar que vão para matar saudades. Talvez tenha faltado um interlocutor para explanar as imagens, já que era uma amostra visual e falar sobre o cotidiano de forma mais aberta. Dou a sugestão para você gravar um etinerário da amostra e apresentar como sugestão. Quem organizou não foi feliz!

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  7. O problema todo é retratar todo um povo como passivo. Quando eu for visitar vc Jaci gostaria de conhecer Claudinea e o agreste dela ;) para não ficar com a perspectiva do litoral. Beijos para as duas!

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  8. Oi Pandora!
    Muito emocionante o relato da Claudineia! Eu adorei, pois moro no interior de SP, então estou bem longe do sertão nordestino. Não conheço sua realidade além do que é retratado em filmes e livros. Gostei do post pois pude conhecer mais.

    Beijos,
    Sora | Meu Jardim de Livros

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  9. Eu estou sem palavras. Foi tocada, emocionada. E nesse momento, não vou mentir, mas choro. Mas meu choro não é de pena. É de tristeza. O relato da Claudineia me alimentou e me trouxe uma nova visão. O meu lamentar é justamente por todo o povo brasileiro, que não conhece o próprio país, e eu me incluo nessa estatística. Infelizmente.
    Temos uma cultura maravilhosa, uma história incrível com personagens batalhadores e cheios de vida...e quem liga para isso? Quase ninguém. Meu lamento vai para nós mesmos, que sabemos mais da cultura de qualquer outro país, mesmo sem nunca ter estado lá enquanto o nosso Brasil, o nosso povo é deixado de lado, mesmo com culturas interessantíssimas, que se modelam a cada região. Até mesmo a nossa culinária e diversa e mesmo assim, há algum bloqueio (sociopolítico) que eu aqui do RJ não conheça a culinária da sua cidade, que difere. Não é mesmo? É triste, é bem triste...
    Adorei esse relato. E o que eu posso dizer é: Grite!
    Beijos
    5 O'clock Tea

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  10. Olá, meninas.
    Como as coisas são não é mesmo?
    Fui lendo o texto e comecei pensando "ah, ela não entendeu o que eles queriam passar" Aí de repente mandei um cala a boca pra mim mesma porque eu não tenho o direito de falar sobre. Quem sou eu para definir o que os outros sentem? O quanto se sentem ou não se sentem representados. Então quando eu lembrei disso, comecei a sentir empatia. Empatia porque de certa forma sei como é não se sentir representada, sei como é ser vista como "objeto de pena". Não da mesma forma, mas a gente não precisa ter empatia para sentir o que o outro sentiu.
    Depois fui lendo os comentários e me deu uma raiva do moço dizendo que Claudinéia não entendeu nada. E o que dá raiva é que eu também pensei isso no começo. Mas depois consegui me por no meu lugar. Mas o moço não. E são essas pessoas que não assumem que estão erradas e que existem pessoas que sentem coisas diferentes e que tem mais direito de argumentar (porque vivem aquilo) que não permitem que a empatia domine o mundo.
    Ufa! Desculpa pelo desabafo.
    E Claudinéia, seu grito está sendo ouvido. Eu ouvi. E ele me modificou de uma forma que museu nenhum teria feito.
    Muito obrigada!

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  11. Olá!!!
    Acho que todos nós temos uma história para contar seja ela alegre ou triste, de trabalho árduo,de luta para conseguir superar as dificuldades do dia a dia e educar seus filhos sonhando para que consigam ser alguém na vida, se formar e seguir uma guerreira de respeito. Sim temos que nos orgulhar de onde viemos, onde nascemos, de nossas raízes e seja em que região for. Infelizmente Claudineia é muito triste saber que este museu não soube representar o seu povo, o sertão em sua plenitude que é abordado em tantos momentos de nossa história. Quantos filmes narram a história desse povo e temos o livro que virou filme chamado Entre Irmãs.
    Ele narra sobre duas irmãs que nos anos 30 são separadas pelo destino.Elas enfrentam o preconceito e o machismo, uma por parte da alta sociedade na cidade grande, e a outra de um grupo de renegados no interior. Apesar da distância, elas sabem que uma só tem a outra no mundo e cada uma, à sua maneira, vai se afirmar de forma surpreendente.
    Que seu grito possa continuar sendo ouvido e que aqueles que sentem "pena" podem começar a ver o povo do sertão com outros olhos.
    Impossível não ouvir o seu grito que veio bem lá do fundo de seu coração provando as suas origens, suas raízes e a força de uma mulher guerreira. Sim eu não a conheço, mas nem preciso depois de ler o seu relato.
    Deixo aqui um pensamento de Cora Coralina que é um exemplo de vida e superação, a poeta do cerrado.
    "Nunca escreverei uma palavra para lamentar a vida. Meu verso é água corrente, é tronco, é fronde, é folha, é semente, é vida!"
    Fique com Deus!
    Beijos
    Saleta de Leitura

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