sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

"O mal-estar na cultura" & "Coisas Frágeis"

Comecei a me interessar de forma definitiva pela obra de Sigmund Freud por causa de um amigo, coincidentemente, algo parecido aconteceu com Neil Gaiman. Também foi um amigo, dessa vez  da faculdade, a me fazer ter interesse pelo autor, aliás ele até mesmo me emprestou "Stardust". O tempo passou e hoje leio tanto Freud quanto Gaiman por gosto, curiosidade e talvez até por paixão.

Ambos são autores de sinceridade incomum, sempre tenho a impressão de a titulo de desvendar a psique humana para um e contar histórias para outro, eles desvendam a si mesmo e se desnudam. Ambos possuem a coragem para expor seus ideais e isso de muitas formas me cativa como leitora e ser humano.

Nesse dia de Natal decidi escrever sobre esses dois autores, ou melhor, sobre livros desse autores porque nessa manhã acabei de ler os volumes 1 e 2 do livro "Coisas Frágeis" do Neil Gaiman e ao longo de toda leitura desse livro pensei muito em "O mal-estar na cultura", um livro de Freud cujo tema tem me inquietado nos últimos tempos.


Para mim "O mal-estar na cultura" é um livro desolador, ele funciona como o desfecho de uma trilogia que começa com "O futuro de uma ilusão" passando por "Totem e Tabu". Apelidei carinhosamente essa trilogia de "Mil e um motivos práticos e consistentes para ser infeliz". A parte isso, em "O futuro de uma ilusão" Freud apresenta o seu conceito de cultura fundamental para compreender sua obra, a saber: 
"... tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima de suas condições animais e se distingue da vida dos bichos; e eu me recuso a separar cultura e civilização - ... Ela abrange, por um lado, todo o saber e toda a capacidade adquiridos pelo homem com o fim de dominar as forças da natureza e obter seus bens para a satisfação das necessidades humanas e por outro, todas as instituições necessárias para regulas as relações dos homens entre si e, em especial, a divisão dos bens acessíveis." (O futuro de uma ilusão, p. 36-37).
A religião nesse contexto fica entre uma tecnologia social criada pela cultura para explicar o inescapável e um tipo de neurose coletiva construída nos livrar de nossas neuroses pessoais. Não chega a ser ruim e nem ele prever um caos existencial para a humanidade.

"O futuro de uma ilusão" e "Totem e tabu" terminam no "nada está perdido", mas, quando eu pensa que não, venho em "O mal-estar da cultura" e tasca na minha cabeça a ideia de que Cultura não é tão legal assim.


Freud me fez pensar que ao criar cultura, os seres humanos inventaram um caminho de perdição si. Sublimar extintos violentos, desenvolver altas tecnologias, driblar fragilidades físicas e evolutivas, em síntese, pretender dominar a natureza criou na nossa espécie um mal-estar. A pretensa grandiosidade da nossa Cultura criou e segue criando um rigoroso código de moralidade o qual ninguém consegue seguir muito bem e do qual nos tornamos reféns.
"Cada renuncia a um impulso se transforma então numa fonte dinâmica da consciência moral, cada nova renúncia aumenta sua severidade e sua intolerância, e, se pudéssemos harmonizar isso melhor com a história que conhecemos da origem da consciência moral, estaríamos tentados a nos declarar partidários da seguindo tese paradoxal: a consciência moral é o resultado da renúncia aos impulsos; ou: a renúncia aos impulsos (que nos é imposta de fora) cria a consciência moral, que então exige mais e mais renúncias." (O mal-estar da cultura, pg. 153-154)
Fiquei com a sensação de ser inútil lutar por exemplo, para poupar as novas gerações dos traumas da minha, pois eles ainda viverão em sociedade, consequentemente adquirirão seus próprios traumas, sua cota de tabus. Para completar, o desfecho do livro é uma pergunta desalentadora. Nas palavras de Freud, tradução de Renato Zwick:
"Os seres humanos conseguiram levar tão longe a dominação das forças da natureza que seria fácil, com o auxílio delas, exterminarem-se mutuamente até o último homem. Eles sabem disso; daí uma boa parte de sua inquietação atual, de sua infelicidade, de sua disposição angustiada. E agora cabe esperar que o outro dos dois "poderes celestes", o eterno Eros, faça um esforço para se impor na luta contra o seu adversário igualmente imortal. Mas quem pode prever o desfecho?" (pág. 184-185).
A luz dos inúmeros acontecimentos dos últimos tempos me peguei pensando em quem ou que poderá nos salvar de nós mesmos? Porque o Eros esta perdendo... Neh por nada não, mas o negocio aqui tá meio tenso.

No entanto, não está na minha lista de prioridades de vida alimentar meus monstros, ao menos não mais do que o necessário. Talvez por isso tenha me pegado nesse no meio das desolações de fim de ano finalmente lendo "Coisas Frágeis" do Neil Gaiman, uma coletânea de contos e poemas, originalmente publicados em um único volume, no Brasil viraram dois por luz e obra da Conrad.


Absolutamente todos os textos dessa coletânea ignoram solenemente aquilo que costumamos considerar solido. Acho que Marx disse algo como "tudo o que é solido se desmancha no ar" em algum momento da vida, talvez no "Manifesto do Partido Comunista", nessa coletânea Gaiman parece ter tido o intuito de mostrar que ao contrario dos sólidos os frágeis conseguem resistir as intempéries.

Não a toa, a primeira frase do livro é a seguinte: "Acho... que prefiro me lembrar de uma vida desperdiçada em com coisas frágeis, a uma vida gasta evitando a divida moral.". Quando li essa frase me lembrei de Freud, do meu desalento ao acabar de ler sua "trilogia" e me peguei rindo sozinha e sabendo que escreveria sobre tudo isso quando terminasse de ler.

Conto a conto Gaiman faz a magia do contado de história transportando o leitor para a beira de uma fogueira ancestral na qual se pode ouvir um velho xamã contar histórias lúdicas e sinceras, mesmo quando não baseadas necessariamente em fatos reais. Também sinto como se ele fosse um tipo de amigo de infância com o qual compartilho memórias, sonhos, alguns monstros e locais sagrados também.
"Ele havia lido livros, jornais e revistas. Sabia que, quando você foge de casa, as vezes encontra gente ruim que faz coisas ruins com você. Mas também lera contos de fadas, e sabia que havia pessoas boas no mundo, em meio aos monstros." (A vez de outubro).
Desde essa primeira frase do livro me peguei pensando sobre formas de me salvar das minhas neuroses particulares e coletivas, da aflição cotidiana, do receio em relação a próxima temporada da Terra, da falta de sentido, dos meus limites, do mal-estar de viver, do pesadelo, do medo, da fadiga contida em ter que acordar. Me peguei pensando em inúmeros talvez.


Talvez uma salvação para o caos existencial, esse mal-estar impregnante, esteja nas coisas delicadas, naquilo que não é perene.

Talvez contrair dividas morais fugindo dos objetivos altos, nobres e lúcidos nos salve.

Talvez se permitir cumprir tardiamente uma promessa, mas ao faze-lo garantir que cada milímetro produza sorrisos. O conto "O pássaro do sol", foi um presente tardio dado pelo autor a sua filha, demorou a ser feito, mas uma vez concluído é o tipo de história que nos faz ri do primeiro ao ultimo paragrafo.

Talvez resgatar da infância algo que nos incomoda e trabalhar ele de alguma forma ajude a não se afogar. Algo como o que Gaiman fez ao resgatar Susan, a irmã "pecadora" das "Crônicas de Nárnia" no perturbador conto "O problema de Susan". As vezes enfrentar a infância causa resultados perturbadores mesmo, como ser livre!

Quem sabe se despir não alivie os fardos, abdicar...
"Despir minha camisa, meu livro, meu casaco, minha vida. Deixá-los, cascas vazias e folhas secas. Ir em busca de comida e de uma nascente. De água fresca," (Virando Wodwo)
Quem sabe contar uma história, aliás quem sabe fazer de contar histórias um habito. Eu não tenho filhos ou filhas, mas conto histórias diariamente abro livros livros já rotos, gastos e remendados de tantos serem lidos e relidos. Histórias que as vezes eu nem mesmo leio, apenas abro e as crianças contam entre sorrisos naqueles que são alguns dos meus melhores da vida e quando elas amam uma história pedem de novo... de novo... de novo... Me enterneci, emocionei e identifiquei com o poema "Cachinhos", ele é intimo... intimo como o momento da contação de história.
"Devemos isto uns aos outros: contar histórias, simplesmente como pessoas, como pai e filha. Eu a conto para você pela centésima vez:
- Era uma vez uma..."  (Cachinhos)
Quem sabe seguir velhas instruções pregadas em nosso coração por pessoas que viveram antes de nós, mesmo quando elas parecem antiquadas também ajude a nós salvar. Talvez manter viva a memória... ser bom, ouvir nossos fantasmas... lembrar...
"Lembre-se do seu nome. Não perca a esperança - o que você procura será encontrado. Confie nos fantasmas. Confie que aqueles que você ajudou vão ajuda-lo por sua vez. Confie nos sonhos. Confie no seu coração." (Instruções)
Quem sabe a resposta esteja em se deixar gastar pelas coisas, deixar a divida moral se acumular em algum baú qualquer do subconsciente. No desfecho do conto "Inventando Aladim", o ultimo da edição da Conrad, está escrito: "nós nos salvamos de formas bastantes improváveis".

Talvez, se o Eros falhar, quem sabe, realmente, o improvável nos salve!

6 comentários:

  1. Citações muito interessantes que nos fazem pensar em ler os autores. Infelizmente para mim, nunca li nenhum dos dois.
    Um abraço e dias felizes.

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  2. Tão lindo o Freud! rs Li e estudei bastante sobre a obra dele na faculdade, não é minha abordagem mas ele influenciou muito o que temos hoje e concordo com alguns aspectos do seu legado.

    Feliz 2000 e 16!!!

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  3. Aqui estão duas coisas dificeis:
    1: Comentar um post sem necessariamente criar outro em resposta.
    2: Comentar Gaiman e freud e lê-los, sem sentir aquela inveja mortal de quem lê algo grandioso e pensa ressentido: "por que diabos não sou capaz de escrever dessa forma essas coisas que são reflexões minhas, mas que vem ao mundo através da maestria desses gigantes?"

    Tem tempos que não leio Freud com a obsessão messiânica que me acometeu quando sai da faculdade.

    Gaiman tem uns dias que não leio. "Fumaça e Espelhos" li a uma semana,e "Coisas Frágeis" ha um mês, mas eu amo tanto Gaiman e Freud, que calejado pelo meu jihad pessoal, trato de Lê-los agora como entretenimento, desrespeitosamente, como quem lê quadrinhos.

    Porque esses dois já me levaram longe demais, para lá daquele ponto razoável onde a nossa mediocridade nos mantém seguros. Se eu lê-los, tal como merecem ser lidos, dois do meus maravilhosos bodhosttivas, sei no que me tornaria... E não estou pronto anda....

    Saudades de você, moça....

    PS: Por favor, se lembre das duas dificuldades apontadas por mim no inicio desse comentário..

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  4. gosto de freud mas acho que a psicologia já evoluiu muito de lá para cá. sou interessada pelo tema tb. eu li uma biografia do freud do peter gay. maravilhosa. li parte das cartas entre freud e yung e vi o filme método perigoso que fala de freud e yung. filme incrível tb. beijos, pedrita

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  5. Olá!

    Eu também tenho muita curiosidade para conhecer as obras de Sigmund Freud, afinal quero muito cursar Psicologia, e fiquei especialmente curiosa por O mal-esta na cultura, pois adoro ler sobre cultura, padrões sociais, e etc. Eu tenho os dois livros de Coisas Frágeis, mas acredita que até hoje não tomei vergonha na cara e li? rs Todo mundo fala muito bem do autor, e preciso logo ler algo dele...

    Feliz Natal atrasado e um excelente Ano Novo!
    Beijos!
    Visite o Mademoiselle Loves Books!
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  6. Oi Pan!
    Ja li alguns textos de Freud. Na universidade trabalhei com as teorias dele, e são densos. É algo extremamente complexo e cativante. Gosto muito.
    Já o Neil não li nada, mas tenho vontade de conhecer. O pessoal fala muito bem dos livros dele. e já vi algumas resenhas sobre esse "Coisas Frageis"

    Abraços
    David
    http://www.olimpicoliterario.com/

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